Para Marília Pêra, atriz desde a primeira infância, trabalhar era sinônimo de viver. Nos últimos dois anos, contornando como podia as dores que sentia em decorrência de um desgaste nos ossos do quadril, e buscando manter a excelência que marcou sua carreira, ela dirigiu duas montagens teatrais, estrelou outras duas, fez Pé na cova na TV e ainda gestou um CD (inacabado, não deve ser comercializado), uma fotobiografia (a ser lançada em janeiro, quando a atriz faria 73 anos) e uma nova peça."O trabalho para nós, atores, opera milagres", disse nesse domingo, 6, Miguel Falabella, autor e companheiro de cena no humorístico da TV Globo. Como uma forma de animar a amiga, ele começara a escrever a série Negócios de família, na qual Marília seria uma viúva negra a matar para perpetuar seu padrão de vida. "Ela estava amando a ideia. A possibilidade de fazer esse personagem era a possibilidade de uma nova vida para ela", ele acredita. Marília morreu sábado, 5. no Rio. Tinha câncer pulmonar, condição sobre a qual mantinha discrição total.
Nesta terça-feira, 8, assim como nas próximas semanas, sua última personagem, a maquiadora de funerária Darlene, estará no ar — "temos um encontro marcado com ela, seu gim e seu eterno cigarro apagado na mão", escreveu Falabella em seu perfil no Facebook, numa homenagem.
Há uma temporada inteira para ser exibida, contou o jornalista Artur Xexéo, um dos roteiristas da série. Marília gravou até quatro meses atrás, mesmo fragilizada fisicamente, sem conseguir se deslocar com agilidade pelo cenário: as cenas, sempre em estúdio, eram escritas de modo que ela tivesse onde se sentar ou se apoiar. No fim das gravações, chegou a usar uma cadeira de rodas para chegar e sair com mais conforto.
"Ela tinha muito orgulho do sucesso da Darlene. Quando precisou se ausentar para se cuidar e a personagem saiu de cena, foi um choque escrever sem ela, mas o Falabella deu uma virada legal", contou Xexéo, referindo-se ao período entre o fim de 2013 e junho de 2014, quando Marília se afastou em consequência da deterioração da articulação coxo femural. Na volta ao set, ela deu entrevistas contando que havia se excedido no musical Alô, Dolly, de 2012, em que cantava e dançava por duas horas e 30 minutos.
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Ela gostou de seu texto sobre a diva, tanto que, este ano, repetiu a dose: mesmo debilitada, quis dirigir Depois do amor, sobre Marilyn Monroe (interpretada por Danielle Winits), também de Duarte. A peça estreou justamente no sábado, no Teatro Amazonas (Manaus), horas após sua morte.
"Durante um mês e dez dias, ensaiamos das 15h30 às 19 horas na sala da casa dela, em Ipanema. Mesmo doente, Marília aprovou cenário, tratou da luz, dos figurinos. Ela dizia que adorava ensaio, que ficava animada quando a gente chegava. A estreia foi muito bonita, li um bilhete que escrevemos juntos e que dizia que ela não poderia estar presente", disse Duarte.
"No primeiro dia da leitura, ela disse que a saúde estava fragilizada e talvez não pudesse dar tudo de si. Até esses últimos dias estava preocupada com a estreia. Sobre a doença, era muito discreta, não falava. Eu brincava dizendo que era um touro disfarçado de borboleta: muito magrinha, delicada, mas forte demais."
A assistente Paula Leal, cantora que a preparou para Herivelto como conheci, espetáculo musical que estreou em 2012, lembrou o empenho de Marília para gravar um CD. "Em nenhum momento Marília parou por causa da doença. O problema dela era só a dor. Mas gravava Pé na cova às segundas, terças e quartas e ia para o estúdio às quintas e sextas. O tamanho do comprometimento dela com qualquer trabalho era algo impressionante. Com ela, nunca tinha jogo ganho."
O CD não deve sair — Marília havia registrado só a chamada voz guia (usada para nortear os instrumentistas), não as versões definitivas. O repertório tem, entre outras músicas, uma versão de Miguel Falabella para a canção Youkalli, um tango de Kurt Weill, uma nova versão sua para A cara do espelho, do ex-marido Nelson Motta com o ex-cunhado Guto Graça Mello, que ela já cantava, e uma nova de Nelson, chamada Sonho de valsa.
No Facebook, Nelson contou que o título original deixado pelo maestro Lyrio Panicalli, era A última valsa, mas foi mudado por causa da doença dela. "Ela pensou que a música sempre se chamou assim e adorou. Pena que não teve tempo de gravar. Fica como um gesto de amor, respeito e admiração. E saudade", escreveu o compositor."É um projeto lindo, mas a gente não vai fazer nada com esse material, porque Marília era muito perfeccionista e não tenho vontade de lançar algo que ela não aprovaria", disse Kati Almeida Braga, da gravadora Biscoito Fino. "Ela estava animadíssima com o CD. Participei de várias reuniões sobre o assunto e estivemos juntas no domingo da outra semana numa churrascaria."
Pela editora Arte Ensaio, sairá a fotobiografia que leva seu nome de solteira, Marília Soares Marzullo Pêra, com registros desde a infância artística. Para 2016, a atriz queria montar Longa jornada noite adentro, de Eugene O'Neill, com direção de Jorge Takla. "Eu já estava captando para fazermos a peça. Cheguei a dizer a ela que seria muito doloroso fazer uma peça que é uma viagem de sofrimento, de tortura. Ela falou: 'não, eu quero, vou exorcizar tudo no palco, preciso viver isso'", lamentou Takla.