Pablo Emilio Escobar Gaviria (1949-1993) estava em La Catedral – prisão de luxo que ele próprio construiu como parte do acordo feito com o governo colombiano para evitar sua extradição para os Estados Unidos – quando se encontrou com o vice-ministro Eduardo Sandoval.
Ainda que seja Escobar o protagonista, 'Narcos' pretende ir além dele. O produto que vem hoje a público, produção bilíngue (inglês e espanhol) filmada na Colômbia, com elenco tanto latino quanto norte-americano, é só a primeira parte de uma história que tem muitos braços.
Caso emplaque uma segunda temporada, a narrativa certamente terá o México como cenário – com o enfraquecimento dos cartéis de Cali e Medellín na década de 1990, os traficantes mexicanos passaram a dominar o mercado mundial.
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“Pablo Escobar inventou o narcoterrorismo. Ele chantageou o Estado, metendo bombas nas cidades. As vítimas das bombas de Pablo na Colômbia são várias. Por outro lado, no Bairro Pablo Escobar, construído por ele para os pobres que viviam num lixão em Medellín, você encontra uma foto de Pablo ao lado de uma do menino Jesus”, comenta o ator Wagner Moura, que vive o traficante.
É esta dicotomia que transparece ao longo da narrativa, que tem início ainda nos anos 1970. Na época, Escobar era não mais do que um contrabandista que é apresentado (por um chileno) à cocaína e aos lucros estratosféricos que sua produção e comércio podem gerar.
CARTEL
A ascensão de Escobar, que concebeu o Cartel de Medellín, tornando-se um dos dez homens mais ricos do mundo (em seu auge, nos anos 1980, chegou a ser proprietário de 800 casas), é apresentada sob o ponto de vista do assassino, capaz de uma boa dose de psicopatia (capaz de explodir um avião com 107 pessoas a bordo e matar, a pauladas, antigos colaboradores), mas também de gestos de pai amoroso e filho dileto, que mantém a família muito próxima, a despeito de suas atrocidades.
Foi Padilha quem apresentou o projeto de 'Narcos' à Netflix. O cineasta utiliza o mesmo tripé que marcou seus dois longas 'Tropa de elite': narração em off; câmera tensa, sempre muito próxima dos acontecimentos; e um certo didatismo, que na série ganha a forma de imagens documentais.
Produtor-executivo da série, escrita pelo norte-americano Chris Brancato, Padilha dirige apenas os dois primeiros episódios. Os demais são divididos entre o mexicano Guillermo Navarro, o colombiano Andi Baiz e o brasileiro Fernando Coimbra.
Costurando a trajetória de Escobar, está o agente da DEA (a agência antidrogas dos EUA) Steve Murphy (Boyd Holbrook, o narrador da história).
Ao chegar à Colômbia, ele não demora a apontar um pouco conhecido Escobar como o responsável pela ascensão do narcotráfico. Ao lado do parceiro Javier Peña (o chileno Pedro Pascal), faz da perseguição a Escobar sua razão de viver. E a caça também transforma o pacato agente, tanto no plano profissional quanto no pessoal.
Com a mulher e um bebê adotado (os pais haviam sido vítimas de Escobar) no carro, Murphy tem uma discussão sem sentido com um taxista colombiano. Não pensa duas vezes em deixar o veículo, empunhar uma arma e atirar no pneu do automóvel. É como se houvesse uma voz ao fundo dizendo que ninguém passa incólume ao terror.
Artigo
A cicatriz negada
* Samuel Castro, especial para o EM
Neste mês, Tom Cruise esteve em Medellín, onde nasci e vivo, procurando locações para um filme onde será um piloto que esteve a serviço do cartel cujo chefe supremo era Pablo Escobar Gaviria. Isso foi dois dias depois de uma polêmica nos meios de comunicação colombianos. Uma agência de viagens internacional começou a oferecer visitação a locais importantes da vida de Pablo Escobar, começando pela casa na qual a polícia o matou há quase 22 anos e seguindo pela famosa Fazenda Napoles, hoje convertida em zoológico.
Não existe um único mês em que algum amigo não publique no Facebook um meme em que o ator Andrés Parra, caracterizado como o traficante para a exitosa série de TV Escobar: o senhor do tráfico, anota algo em uma caderneta, como se imagina que o mafioso fazia para não esquecer nenhuma dívida pendente, que terminaria cobrando caro. O texto do meme sempre muda (pode ser um árbitro de futebol equivocado, alguém que disse algo sobre os colombianos no exterior ou outra injustiça qualquer), mas o mafioso e sua caderneta sempre aparecem.
Nem quando eu era criança e ele estava vivo, nem agora, que sou um adulto e Pablo Escobar é uma lembrança ruim, deixei de escutar histórias sobre ele. Existem aquelas que o desenham como realmente foi: um narcotraficante e assassino, causador da morte de milhares de pessoas. E assim Medellín se transformou em sinônimo de violência e terra de matadores de aluguel.
E existem também aquelas que falam da figura dele com admiração, descrevem-no como um “berraco” (“colombianismo” para se referir àquele que alcança suas metas com muito empenho, superando qualquer dificuldade) numa cidade que segue como uma das mais desiguais do país. Como compreender as pessoas de bairros mais populares que continuam colocando velas diante do retrato de Escobar, como se ele fosse um santo? Muitas vezes, foi o traficante quem os presenteou com a casa onde vivem.
Talvez o pior seja o fato de Pablo Escobar ter se transformado em uma cicatriz. Uma cidade como a minha, por querer acreditar que superou seu passado, às vezes mente para si mesma. Detesta que lembrem a cada instante que foi a toca de um dos criminosos mais buscados do planeta e que o modo como ele resolvia seus problemas continua sendo celebrado por muitos de seus cidadãos. Esquecemos que ver as cicatrizes no espelho é triste, mas também útil, porque elas nos lembram o tumor a que sobrevivemos, o mau passo que demos. E nos ajudam a não repetir.
* Samuel Castro é crítico de cinema do jornal El Colombiano, de Medellín