Na definição do dicionário, a crase é a contração ou fusão de duas vogais idênticas (dois 'as') em uma só. Esse sinal minúsculo foi responsável por um grande ruído nesta terça-feira. Um acento grave fora de lugar num post publicado no dia 11 no Facebook de Caetano Veloso sobre um encontro dele e Milton Nascimento no encerramento de um show da banda Dônica, provocou a ira do músico baiano em relação à equipe que cuida de suas redes sociais. O emprego incorreto da crase ocorreu na expressão “homenagem à Bituca (sic)”, que se refere ao apelido do mineiro, e foi corrigido na segunda-feira.
Numa gravação em vídeo, Caetano deu uma aula de como usar a contração de preposição e artigo e chamou seus assistentes à responsabilidade. “Levamos uma bronca do professor Caetano! Kkkkk. Prometemos estudar mais português!”, revelaram os integrantes da equipe, sem dar margem a mágoa.
A declaração do autor de Sampa e Odara no mundo virtual repercutiu à exaustão. A grande maioria aprovou o puxão de orelhas em sua produção. “No mínimo, levanta uma discussão sobre a nossa língua. É muito bacana ver um comentário como esse e não deixa de ser uma contribuição interessante”, opina o cantor, compositor e escritor Vitor Ramil, em entrevista ao Estado de Minas. O músico gaúcho tem um livro sobre o assunto, 'A primavera da pontuação' (Cosac & Naify), no qual a crase é uma das personagens – e é gaga.
É do imortal Ferreira Gullar a afirmação de que “a crase não foi feita para humilhar ninguém”. Mas o músico mineiro Pablo Castro apoia a atitude de Caetano, por julgar que corrigir um erro não é demonstrar superioridade, mas sim uma maneira de valorizar a língua e o país. Pablo se lembra de um caso curioso ocorrido no começo do ano, durante o concurso das marchinhas de carnaval de Belo Horizonte, quando sua canção, que ficou em 5º lugar, quase foi mal-interpretada justamente pelo uso da crase. “A letra falava: 'O Carnaval vai tirar do desespero a alegria', sem crase, e o pessoal começou a colocar a crase, achando que era ‘do desespero à alegria’. Tinha um sentido completamente diferente. Olha como um mero detalhe muda tudo.”
Na opinião de Castro, o fato de as pessoas não saberem utilizar a crase não é fruto apenas da desvalorização do ensino, mas também de não terem um contato mais profundo com a língua, seja através da leitura de livros e jornais ou da própria escrita. “Acho que apenas 15% dos alfabetizados sabem utilizá-la, e isso é muito grave. A gente vê esse tipo de erro até em placa de museu. Se está errado, temos que reclamar, igual fez o Caetano.”
Já o cantor e compositor carioca Pedro Luís acredita que há um certo descuido com a língua na internet e, consequentemente, erros acabam acontecendo. “Cria-se uma linguagem cifrada. Procuro usar o português da maneira mais adequada, mesmo no Twitter, no Face, até porque a língua é um elo de permanência de uma cultura.” Com relação à crase, Pedro diz que já teve problemas em textos nas redes sociais e artigos. Ele brinca que, no caso do post no Facebook de Caetano, acabaram transformando Bituca, um substantivo masculino, numa guimba de cigarro. “Nesse caso, Bituca era um nome próprio de um homem, Milton Nascimento, e não poderia ter crase de jeito nenhum”, explica.
BOSSA NOVA Para o pesquisador Ricardo Cravo Albin, o erro no uso da crase era muito comum, especificamente, na música popular dos anos 1930 aos 1950. “A partir da Bossa Nova é que começaram a surgir preocupações com a escrita na área, especialmente com a entrada em cena de Vinicius de Moraes, poeta especializado na língua portuguesa”, afirma o pesquisador. Segundo avalia, os erros de português continuam comuns na chamada música kitsch, mais descompromissada com o uso da norma culta. “São erros normais, comuns principalmente no rap”, diz.
De acordo com Cravo Albin, foi a partir da entrada em cena do núcleo essencial da Bossa Nova, que reunia Tom Jobim, Vinicius de Moraes e João Gilberto, que passou a existir um zelo maior com a língua na música. “Vinicius, em especial, era uma exímio conhecedor e manejador da língua portuguesa”, afirma. Para ele, Caetano Veloso tem “toda razão” ao cobrar uma escrita aprimorada do português. “Primeiro, porque cuidar da língua é uma obrigação de quem escreve. Depois, porque isso é uma demonstração cultural.”
“Caetano escreve magistralmente, conforme provam não apenas as letras de música de sua autoria, mas, principalmente, os livros que publicou”, diz Ricardo Cravo Albin. O pesquisador avalia que o uso da crase em Bituca, que desatou a ira de Caetano, é produto do automatismo em que vivemos, já que a palavra, embora feminina, na essência é um apelido masculino, no caso, de Milton Nascimento.
Encontro de "as"
A crase ocorre “quando a preposição a encontra o artigo definido a ou a inicial dos pronomes demonstrativos aquele, aquela, aquilo (…). Excluindo-se esse caso, só haverá crase antes de palavra feminina, clara ou subentendida”, ensina a professora Dad Squarisi, que ainda dá a dica para evitar tropeços: substituir a palavra feminina por uma masculina. Se aparecer ao, é sinal de acento grave. Exemplo: Fui a cidade. Com ou sem crase? Se trocarmos cidade por teatro, teremos fui ao teatro. Logo, fui à cidade.