Don Draper senta à beira da estrada e sorri. Para trás, ficou o carro imponente, símbolo inequívoco do sucesso pessoal e profissional dos homens de negócio de Nova York nos turbulentos anos 1960. A cena com o desprendimento material inesperado e sucessor do abandono da própria carreira enquadra a reta final de 'Mad men', premiada série do AMC (exibida pela HBO, no Brasil) sobre a realidade predatória em uma agência de publicidade norte-americana no pós-Segunda Guerra.
O publicitário chega ao capítulo derradeiro, transmitido por aqui nesta segunda-feira, às 21h, prestes a dar um desfecho ao dilema crucial do seriado: ser verdadeiro e arcar com as consequências ou parecer e desfrutar das vantagens obtidas com a falsidade.
O conflito e as circunstâncias geradas a reboque - todos dignos de reflexões contemporâneas, como a veracidade de postagens em Facebook e Instagram - tornaram a série um degrau fundamental na escalada da tevê rumo à chamada atual Era de Ouro. Após ser recusada pela HBO e passar indiferente por produtores por oito anos, a criação de Mathew Weiner revolucionou o AMC - o canal queria largar a exibição de filmes antigos e bancar uma série própria na esteira do impacto de 'Família Soprano', da HBO - e abriu passagem para produções arrasa-quarteirão como 'Breaking bad' e 'The walking dead'.
De cara, a trama descartou o apelo à tríade bem-sucedida de temas clássicos dos seriados de drama (médicos, tribunais e polícia) e ficcionalizou o mundo publicitário com o apego canino à fidelidade histórica e aos novos mandamentos dos protagonistas: personagens controversos, divididos entre boas ações e desvios de caráter recorrentes.
O "mocinho" Don Draper (Jon Hamm) surgiu como provocação à ufanista visão norte-americana sobre os militares. Egocêntrico e beberrão, sedutor e criativo, ele assume a identidade do oficial morto no campo de batalha para desertar e forjar uma nova vida na publicidade - não à toa, segmento encarregado de fabricar imagens e vender desejos. Alimentado pelo sucesso e corrompido pela vaidade, toca uma rotina incerta entre admiração (e inveja) de colegas e clientes, amor (e decepção) de esposas e amantes e carinho (e indiferença) dos filhos.
A gangorra moral encontra na agência de publicidade Sterling Cooper (nome inicial, alterado várias vezes) um caldeirão de tipos e gêneros capazes de reproduzir, de forma rigorosa, tanto figurinos e cenários da época quanto comportamentos, pensamentos e focos de tensão social. A recriação dos trajes característicos dos anos 1960 pelos produtores, por exemplo, se tornou fiel a ponto de as roupas usadas pelos personagens serem copiadas em fantasias de festas de halloween ou inspirarem vitrines de lojas de departamento como a Bloomingdale’s.
A reconstituição de fatos históricos ganhou quase valor documental na série. A eleição e morte de John F. Kennedy (1917-1963) assim como a militância e o assassinato de Martin Luher King Jr. (1929-1968) escancararam o vulcão político dos anos 1960 e a luta por igualdade racial cujos respingos ainda hoje são sentidos nas ruas dos Estados Unidos, ocupadas por protestos contra assassinatos de negros durante ações policiais.
A ausência gritante de cuidados com a saúde em casa ou na rua - médicos fumam até no atendimento a pacientes e executivos bebem desregradamente à luz do dia - ilustram a distância da evolução das políticas preventivas atuais - embora vícios como alcoolismo continuem reais. A histeria com a introdução do computador no mercado de trabalho e a relevância gradual assumida pela televisão alicerçam a ponte para a relação conflitante entre homem e máquina nas décadas seguintes. O retrato é de uma América instável politicamente com o recrudescimento da Guerra Fria e em ebulição a partir da agitação cultural e a quebra de antigos valores - sobretudo pela revolução hippie anunciada com músicas, drogas e abertura sexual.
A série se notabilizou também por desenvolver um compasso próprio. Sem fazer concessões aos nossos dias - prática usual em folhetins preocupados em facilitar a compreensão ou evitar choques de abordagem -, o jeito de falar e as atitudes se tornaram testemunhos da época. Em casa, o diálogo some, a educação é delegada à tevê e os pais se limitam a tutelar os filhos - embora a célula de uma família estável fosse vista como instrumento de poder e reconhecimento público (e o peso do sobrenome nas relações profissionais e pessoais é uma prova). No trabalho, a sobrevivência atropela princípios e dizima amizades. Entre os casais, a voz masculina prevalece e o sexismo se torna uma das feridas incansavelmente remexidas por Mad men.
O papel desempenhado pelas mulheres na série escancara a discriminação sexual predominante nos anos 1960 e 1970, até hoje a chaga nunca expurgada do convívio entre os gêneros - desequilíbrio patente na relação social, política e profissional provado por todo e qualquer tipo de pesquisa. Em um capítulo da última temporada de Mad men, Betty descobre um câncer fatal, e o médico só informa o prognóstico ao marido, enquanto ela ouve tudo à distância - como uma propriedade do esposo cuja validade acabou.
No ambiente de trabalho, o feminino subjaz. Dominado por homens, o fluxo de ascensão e sucesso apenas é alcançado por elas quando anulam o lado mulher ou se curvam aos "desejos" deles - e, não raro, acabam na cama, usadas e descartadas. A situação é ainda mais violenta quando mulheres oprimidas, como Peggy Olson, se tornam opressoras para manter um fiapo de sucesso conquistado na carreira.
O criador e showrunner Matthew Weiner deu poucas dicas de como pretende encerrar a saga de Don Draper e companhia. Mas, independentemente do desfecho deste domingo, a série já está marcada como uma das produções mais bem feitas da televisão norte-americana - seja pela reconstituição técnica, forma própria de narrar, pelo olhar sobre a sociedade ou simplesmente pela capacidade de unir passado e presente sob narrativa de época distante no tempo e atual nos assuntos.