Mesmo sem ter ido ao ar, a série 'Sexo e as nêga', que a Globo começa a exibir no dia 16 de setembro, já está causando polêmica. Por meio de sua ouvidoria, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) recebeu 11 denúncias — até a tarde desta quinta-feira, 11 — sobre conteúdos considerados racistas e discriminatórios relativos ao programa, que retrata a vida de quatro mulheres negras na favela Cidade Alta, na zona norte do Rio.
A ouvidoria da Seppir é responsável por receber, registrar, encaminhar e acompanhar denúncias de discriminação de racismo. Segundo o órgão, a TV Globo foi autuada e as reclamações repassadas ao Ministério Público, que pode instaurar um procedimento investigativa, caso haja irregularidade ou crime. Procurada pela Agência Estado, a assessoria de imprensa da emissora informou que não recebeu nenhum ofício questionando o nome ou o conteúdo da série.
Carlos Alberto de Souza e Silva Júnior, titular da ouvidoria da Seppir, afirmou em comunicado enviado à imprensa que programas de TV não devem reforçar estereótipos. "As produções televisivas deveriam refletir a diversidade da população brasileira em todos os seus segmentos, contribuindo para a consolidação de uma sociedade justa, plural e igualitária", declarou.
No texto, ele cita as situações apontadas nas denúncias. "A ouvidoria da Igualdade Racial vê com estranheza e preocupação qualquer tipo de manifestação que reproduza estereótipos racistas, machistas, que se alicerce na sexualidade das mulheres negras, ou venha a reforçar ideias de inferioridade dessas mulheres, seja nas artes, no cinema ou nas telenovelas e seriados."
Esta semana, Miguel Falabella, criador de 'Sexo e as nêga', deu um depoimento em sua página do Facebook sobre a discussão que a série tem provocado.
Leia na íntegra o que Falabella escreveu:
Eu não gosto de polemizar, porque, geralmente, estou seguro daquilo que faço, mas, às vezes, o silêncio pode se voltar contra nós. Está havendo uma polêmica, aparentemente, sobre Sexo e as Negas. Vamos a ela, então! Comecemos com a gênese do programa: Estávamos nós, há alguns anos, numa feijoada, na Cidade Alta de Cordovil. Karin Hils estava comigo. E havia uma negra maravilhosa, montada, curvilínea e muito sexy, que me disse que cada vez que botava cabelo, dormia três dias "no pique-esconde" (eu usei isso em Pé na Cova). Daí, já não me lembro mais por que, a conversa descambou e acabamos em Sex and the City, porque algumas pessoas da festa eram fãs do programa. Eu disse: "A gente bem que podia fazer um Sex and the City aqui na Cidade Alta... "Sexo e as Negas" gritou a negra deslumbrante, substituindo o S do artigo pelo R, como é usual no falar carioca. Todo mundo teve um acesso de riso e eu fiquei com aquilo na cabeça.
Estou nessa profissão há muitos anos. Não consigo confessar quantos. Tenho feito grandes amigos, tenho construído laços de afeto e respeito e costumo estabelecer com aqueles que trabalham comigo, laços de amor. Portanto, dói-me ver a luta de meus colegas negros na nossa profissão. As oportunidades são reduzidas, não trabalham sempre e, sem exercício, não há aprendizado, como sabemos. Pensei que aquela ideia, surgida numa feijoada, na Cidade Alta de Cordovil, pudesse ser um programa que refletisse um pouco a dura vida daquelas pessoas, além de empregar e trazer para o protagonismo mais atores negros. Basicamente, foi essa a ideia e nem achei que iriam aceitar o programa.
Qual é o problema, afinal? É o sexo? São as negas? As negas, volto a explicar, é uma questão de prosódia. Os baianos arrastam a língua e dizem meu nego, os cariocas arrastam a língua e devoram os S. Se é o sexo, por que as americanas brancas têm direito ao sexo e as negras não? Que caretice é essa? O problema é porque elas são de comunidade? Alguém pode imaginar Spike Lee dirigindo seus filmes fora do seu universo? Que bobagem é essa? Pois é justamente sobre isso que a série quer falar! Sobre guetos, sobre cotas, sobre mitos! Destrinchá-los na medida do possível! Os mitos e lendas que nos são enfiados goela abaixo a vida toda. Da negra fogosa, do negro de pau grande, das mazelas que os anos de colônia extrativista e escravocrata deixaram crescer entre nós. Como é que saem por aí pedindo boicote ao programa, como os antigos capitães do mato que perseguiam seus irmãos fugidos? O negro mais uma vez volta as costas ao negro.
Que espécie de pensamento é esse? Não sei o que é mais assustador. Se o pré-julgamento ou se a falta de humor. Ambos são graves de qualquer maneira. Como é que se tem a pachorra de falar de preconceito, quando pré-julgam e formam imediatamente um conceito rancoroso sobre algo que sequer viram? Sexo e as Negas não tem nada de preconceito. Fala da luta de quatro mulheres que sonham, que buscam um amor ideal. Elas podiam ser médicas e morar em Ipanema, mas não é esse meu universo na essência, como autor. Não sou Ipanemense. Sou suburbano, cresci com a malandragem nos ouvidos. Portanto, as minhas personagens são camareiras, cozinheiras, indicadoras de mesas, operárias. E desde quando isso diminui alguém? São negras, são pobres, mas cheias de fantasia e de amor. São lúdicas! E sobrevivem graças ao humor. Seres humanos. Reais. Com direito a uma vida digna e muito... Mas MUITO sexo! Vai dizer agora que eu sou racista? Ah! Nega...Dá um tempo... Dito isso, faço como Truman Capote: "never complain e never explain!" (Nunca reclame e nunca explique).
Mais tarde, o artista retomou seu perfil na rede social para revelar trecho de uma música cantada pelas quatro personagens na série. "O pente que me penteava /já mudou de direção/ chapinha só alisa o pelo/mas não muda opinião /estica, hidrata alisa, alonga!/eu nunca fui a Rapunzel/ a minha trança subiu solta/ cresceu vistosa rumo ao céu'/ meu cabelo é da hora/ se deixar ele se enrola/ como eu me enrolo em você". Falabella observou que "assim cantam as protagonistas do programa em um dos episódios". E ironizou: "Será que pode?".