João já tinha visto de tudo na vida. Melhor: de quase tudo. Foi que a reação beirou o espanto quando, naquela manhã de domingo, lhe contaram. Convidado para acompanhar a produção de uma cerveja artesanal na casa do amigo de um amigo, fez cara de quem simplesmente não acreditava no que estava ouvindo. Bebida só depois de tudo pronto. E o tudo pronto significava, otimismo, perto de umas seis horas de mão na massa.
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Festival Made in Minas leva gastronomia e música à SavassiFestival de sanduíches movimenta pubs e restaurantes de BHBiquíni Cavadão se apresenta em BH com show inspirado na obra de Herbert ViannaO anfitrião percebeu o fascínio, a feição em êxtase, e tratou de trazer João de volta à realidade. Chamou uma, duas vezes, tom de voz médio. Nada. Bateu uma palma e meio que se deu a impressão de um módulo lunar aterrissando. Sorriu, pra não parecer indelicado, e reforçou.
– João, bem-vindo sempre, mas não leve a mal porque funciona assim mesmo. Cerveja no copo só depois de fogo apagado, resfriamento feito e temperatura no ponto pra botar no refrigerador. Questão de segurança, pra ninguém se queimar, vacilar com o gás, errar a mão na temperatura, no fermento.
Ainda incrédulo, João, movido a espontaneidade e desconhecimento natural, viu ao menos um traço de esperança.
– Então, é só dar uma geladinha e fica liberada pra beber?
A turma riu da forma quase inocente, porque espelhava meio que um senso comum. Quantas vezes foi preciso a didática paciente para explicar que era bem mais complexo do que se imaginava?
– Não, João... Entra pra fermentação numa bombona ou num balde e só vamos ter cerveja daqui a uns 25 dias, por aí.
Ele já começava a se perguntar o que fazia ali. Naquele megacalor, com um monte de desconhecidos barbados e metido num pacto sinistro de... não beber!!! Supremo contrassenso. Pouco tempo e, para piorar, tinha visto cair por terra a imagem de glamour cervejeiro que alimentara, com marmanjos lavando panelas, carregando sacas de malte e, estranha contradição, renegando o álcool.
À francesa, escapou pelo portão lateral, parou no bar da esquina e voltou metido numas oito doses acima da humanidade. Goma de mascar e bala disfarçando o hálito forte. Solícito ao extremo.
– Panela? Eu carrego.
Flanava leve feito uma pluma, riu, contou piadas, gargalhou barbaramente das anedotas dos outros, gargalhou até se contorcer. E foi aí que aconteceu num piscar de olhos. Sorte só ele ter visto. Não contou nada. Não abriu mais a boca.
Agora, são os amigos reunidos perto de quatro semanas depois para o engarrafamento. João ausente. Tudo metódico, com cuidado obsessivo na higienização das garrafas e logo cravariam a última tampinha. Ufa!! Hora de festejar. Mas, opa!! Opa!! Opa!!! Aquele ar de assombro na sala ao se abrir o balde de fermentação.
Eduardo Murta - Jornalista, escritor e cervejeiro
*Esta coluna é publicada quinzenalmente
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