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Carioca da gema

Livro resgata receitas originárias do Rio de Janeiro

Bar Bracarense - Foto: João Victor Burton/Divulgação
Com uma beleza natural inquestionável, o Rio de Janeiro sofre de uma crise de identidade quando se fala em gastronomia. Até mesmo os cariocas têm dificuldade de falar de um prato típico. Isso levou o psicanalista mineiro Flávio Ferraz a iniciar uma longa pesquisa, que resultou no livro A culinária do Rio de Janeiro – da colônia à atualidade. A partir de relatos históricos, ele mostra que existem, sim, muitas receitas que se originaram na cidade ou que são muito comuns por lá.
Ferraz chegou à conclusão de que a culinária do Rio de Janeiro é diferente de todas as outras regiões brasileiras, já que mescla a comida original indígena com influências europeias e do interior do país. “Como era a corte e também foi a capital do Brasil, a cidade recebia muitos estrangeiros e pessoas de outros estados”, aponta. A receita de cabrito assado consegue dar a dimensão dessa mistura: a escolha da carne vem de um hábito português e de uma preferência nordestina.

Omelete da Casa Paladino - Foto: João Victor Burton/Divulgação
A influência lusitana é uma das mais marcantes, tanto que predomina o consumo do bacalhau em pratos e petiscos, a começar pelo bolinho de bacalhau, encontrado em praticamente todos os botequins. Além das receitas tradicionais, surgiram ao longo do tempo algumas invenções, como o bacalhau Aurora, criado na cozinha do restaurante que dá nome ao prato. O peixe grelhado é servido com molho de tomate, cebola e azeitonas, arroz com brócolis e batatas cozidas.

Outro exemplo é o bacalhau à carioca, em que lascas vão ao forno misturadas a um molho branco com ovos cozidos.


Há muitos outros pratos que se inspiraram em tradições portuguesas, como o camarão com chuchu que, na opinião do escritor, é o mais emblemático da cozinha carioca. “É uma receita de origem lusitana, mas desenvolvida no Rio e cantada em verso e prosa.” Carmem Miranda gravou em 1940 a canção Disseram que eu voltei americanizada, em resposta a quem a acusava de virar as costas para o Brasil. No refrão, ela diz: “Enquanto houver Brasil, na hora das comidas sou do camarão ensopadinho com chuchu”. A receita vem da Ilha da Madeira, onde costuma-se usar o chuchu com peixes e frutos do mar.

O angu carioca, mais antigo prato do Rio, mistura referências portuguesas com africanas. Ainda quente e mole, o fubá cozido é despejado em cima de carnes e miúdos. Ferraz conta no livro que escravas alforriadas preparavam a receita para vender nas ruas da cidade. A cena chamou a atenção do francês Jean-Baptiste Debret, que pintou, em 1826, o quadro Angu da quituteira, com várias mulheres servindo uma fila de clientes na Praça do Peixe, a atual Praça 15.

Até hoje um restaurante no Centro serve a receita original e versões de carne moída com azeitona, calabresa, frango com milho e frutos do mar.

FEIJOADA Tal como conhecemos, a feijoada tem origem no Rio de Janeiro: “Ela é uma adaptação do que já existia em Portugal e na Península Ibérica, que é a mistura de carne, feijão e caldo”, pontua. Os cariocas tiveram a ideia de preparar a receita com feijão-preto, carne, embutidos, pé e rabo de porco, farofa, laranja e pimenta e a deixaram com a cara do Brasil.
Vindos princi

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

palmente de Portugal, os doces ganharam sabores brasileiros. “As receitas têm origem portuguesa, mas são completamente adaptadas com o uso de ingredientes locais, como castanha de caju, coco e mandioca, especialmente pela falta e pelo preço alto da amêndoa”, comenta. No livro, são citados, por exemplo, a baba de moça, doce favorito no Rio durante o Império; a cocada carioca, que fica amarela em função do uso de gema de ovo; os bolinhos mãe-benta, preparados com fubá de arroz, e o pudim de leite, da época em que não existia leite condensado.

 

Camarão
com chuchu


Ingredientes

1kg de camarões de pequenos a médios, limpos e sem casca; sal a gosto; suco de 1 limão; pimenta-do-reino moída a gosto; 5 colheres de sopa de azeite de oliva; 1 cebola grande picada em pedacinhos; 1 dente de alho picado em rodelas finas; 3 tomates maduros, sem pele e sem sementes cortados em pedacinhos; 3 chuchus médios descascados, sem miolo e picados em cubinhos; água, o suficiente; salsinha
picada a gosto

Modo de fazer

Deixe o camarão no tempero de suco de limão, sal e pimenta-do-reino por 1 hora. Aqueça o azeite para refogar a cebola. Quando estiver dourada, junte o alho e deixe dourar. Acrescente os tomates e os chuchus e cubra com água. Deixe cozinhar até que o chuchu comece a ficar macio, acrescentando um pouco de água quente se necessário.

Escorra os camarões do tempero, junte ao chuchu e cozinhe por cerca de 15 minutos. O ideal é calcular o tempo para que fiquem prontos junto com o chuchu. Tire do fogo e salpique a salsinha. Sirva com arroz branco e pimenta malagueta.

 

 

Receitas testadas

 

Por onde passa, Flávio Ferraz tenta garimpar livros sobre comida. O seu maior interesse é pela culinária regional brasileira. O psicanalista sempre viajou muito para o Rio de Janeiro, mas nunca encontrava nos sebos registros de receitas cariocas, apenas guias de botecos.  “No Rio não tem o apelo de regionalismo como tem em Minas, Pará ou Goiás, lá é onde surgiu a comida brasileira propriamente dita, então as receitas cariocas acabam se confundindo com as nacionais”, observa.
Embora tenha sido criado no interior de Minas e more em São Paulo, Flávio cultiva uma paixão antiga pela Cidade Maravilhosa. Desde novo, ele frequentava botecos e restaurantes na companhia da irmã mais velha. Depois, conheceu outros tantos lugares através de amigos como o cartunista Henfil. Na obra, ele une a sua admiração pelo Rio com o interesse pela gastronomia.

“O livro faz um esforço histórico de não deixar perder parte da nossa história e das receitas.”


Foram seis anos de pesquisas, que passaram por livros de culinária, jornais, revistas, guias de turismo, teses e livros de história. Ferraz também buscou referências na literatura de Machado de Assis, Pedro Nava e outros tantos escritores que descreveram pratos consumidos pelos cariocas. O pintor francês Jean-Baptiste Debret também ajudou bastante a identificar hábitos alimentares comuns nos séculos passados. “Me deu trabalho igual a uma tese de doutorado”, compara.
Tão importantes quanto os relatos históricos são as receitas, 500 no total. O autor reuniu muitas registradas por escrito e outras tantas foram passadas em conversas por cozinheiros e donos de restaurantes e bares. Em casa, ele testou praticamente todas para apresentar aos leitores. Também fazem parte do livro receitas do interior do estado, como da Região dos Lagos, onde é comum comer sernambi à fluminense, prato que os pescadores preparam com o molusco que vive enterrado na areia da praia.

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