Comunidades ribeirinhas apresentam sabores da culinária do Pará

Tradição no plantio da mandioca atravessa gerações e a farinha vai à mesa com o tempero da amazônia

por Gustavo Werneck 02/12/2018 13:00
Saulo Jennigs/Acervo pessoal
Arroz tapajônico chega à mesa com gosto de natureza (foto: Saulo Jennigs/Acervo pessoal)


Santarém (PA) – De manhã bem cedinho, começa a lida na casa e no quintal de Benedito Castro Pedrosa, o Bené, de 70 anos, e Sebastiana dos Santos Pedrosa, de 66, a Sabá. Nesse pedaço da comunidade ribeirinha de São Francisco do Carapanari, a 17 quilômetros do Centro de Santarém, na Região Norte do país, o casal mantém a tradição de produzir farinha de mandioca (branca, amarela e de tapioca. A atividade, que vem dos antepassados, cresceu, apareceu e já chegou a um restaurante premiado da cidade, o Casa do Saulo, dono de cardápio caprichado, vista deslumbrante do Rio Tapajós e espaços de lazer para relaxar e esquecer da vida.

A parceria entre o casal e Saulo Jennings começou há 10 anos – e foi nessa época, ao conhecer os dois e a história da comunidade onde vivem hoje 45 famílias, que o chef de cozinha e proprietário decidiu estimular o plantio, sem interferir no jeito de produzir. “O processo estava meio parado e a nova geração não tinha o menor interesse em continuar, preferindo buscar emprego na cidade”, recorda-se Saulo.

Ciente de que essa região da Amazônia, no Oeste do Pará, tem todo potencial para produzir de forma organizada e sustentável, Saulo decidiu pagar para ver, sempre apoiado nos pilares econômico, social e ambiental. A investida abriu portas para uma via de mão dupla: saída dos produtos totalmente artesanais e entrada de visitantes e interessados no jeito de trabalhar e viver da família. O local ganhou o nome de Casa de Farinha e fica no distrito Eixo Forte, um vetor de crescimento e expansão urbana.

Para quem está acostumado a simplesmente comprar a farinha no supermercado, é bom saber que há várias etapas no processo, a partir do momento em que Bené vai à roça, no fundo do quintal, e volta carregando, nas costas, as raízes graúdas. Depois de retirar as cascas da mandioca com uma faca amolada, Bené deixa tudo de molho para fermentar, dá uma “chacoalhada” no recipiente e depois vai secando uma a uma.

Gustavo Werneck/EM/DA Press
Benedito Castro Pedrosa cultiva mandiocas no quintal de casa, depois "força" na prensa, com ajuda do neto João Pedro. (foto: Gustavo Werneck/EM/DA Press)

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Leva numa fôrma no fogão, com o cuidado de não queimar e, pronta a farinha, faz a alegria da mulher Sebastiana (foto: Gustavo Werneck/EM/DA Press)


Saulo Jennings/Acervo pessoal
O chef Saulo Jennings apoia a produção dos ribeirinhos e tem receitas exclusivas (foto: Saulo Jennings/Acervo pessoal)
TUCUPI Com a prática de quem se dedica à atividade desde criança, Bené dá continuidade ao trabalho e vai contando um pouco da história. “Sempre sobrevivemos da farinha de mandioca e dos peixes. Mas foi muito bom, quando o Saulo chegou aqui e apresentou a proposta de trabalhar em parceria”, diz o produtor.

A próxima etapa será passar as peças no ralador, movido a motor, e depois na prensa. É nessa fase que se obtém o famoso tucupi, caldo amarelo e aromático usado em iguarias típicas do Pará, entre o pato ao tucupi e o tacacá, que leva ainda goma de tapioca jambu (planta típica da região) e camarão seco.

Pensa que acabou? Tem mais. A massa da mandioca passa numa peneira, é escaldada e depois volta novamente à peneira. Finalmente, vai ao fogão a lenha, numa enorme fôrma, que merece cuidado permanente da família para não queimar. Bené já conta com a ajuda do neto de João Pedro, de 10, principalmente na hora de rodar a haste da prensa. Ele quer estudar, não decidiu ainda qual profissão seguir, mas gosta de aprender com o vovô.

PRATOS A matéria-prima usada por Saulo para fazer pratos que fazem a festa para os olhos e o paladar. Tem o pirão escaldado com caldo de peixe, a farofa de piracuí com banana da terra, moqueca e muitos outros. “Servimos a farinha de seu Bené como acompanhamento de todos os pratos. Ela está presente em 100Þ nosso cardápio”, destaca Saulo. Sempre preocupado em estender a mão,  Saulo deu emprego a um jovem venezuelano, que vai trazer a família para viver em Santarém.

Doce de farinha de tapioca


Ingredientes

200g de farinha de tapioca 1 caixinha de creme de leite 3/4 de uma caixinha de leite condensado 50g de coco ralado Leite para cozinhar a farinha de tapioca (suficiente para dar a consistência ideal)
1 pitadinha de sal

Modo de fazer

Deixar a farinha de tapioca de molho no leite por 20 minutos. Em seguida, levar ao fogo brando e cozinhar. Quando estiver cozido, e já fora do fogo, acrescentar os outros ingredientes. O mingau não pode estar nem duro, nem muito 
ralo, para ficar com 
boa textura.

Receita fornecida por Maria Odila Duarte Godinho, da comunidade Anã, de Santarém (PA) 

Ian Pereira/Divulgação
Na comunidade de Anã, Maria Odila faz doce cremoso à base de farinha de tapioca (foto: Ian Pereira/Divulgação)

Cozinha em outro ritmo 


De volta a Santarém, nada melhor do que conhecer o Mercadão 2000, na Avenida Tapajós, onde são comercializados vários produtos da região: frutas, artesanato, licores, elixires à base de plantas medicinais e centenas de outros. Uma das atrações é a Feira do Pescado, onde pode ser encontrados tambaqui, matrinxã, pirapitinga, pirarucu e surubim. Numa banca, está o charutinho, e o vendedor bem-humorado se apressa em dizer que “o peixinho é primo da sardinha”.
Depois de fazer uma “garimpagem” no Mercadão 2000, nada melhor do que navegar pelo Tapajós e ir até a comunidade de Anã, distante duas horas (de barco catamarã) e localizado dentro da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, que desenvolve, entre outros projetos, a piscicultura e melipomel (criação de abelhas sem ferrão). Se agendado, é possível almoçar e desfrutar dos temperos dessa comunidade afetuosa que acolhe o visitante com o maior carinho. Tem até um redário (redes para descansar) num cômodo fechado com telas para evitar a entrada de mosquitos. Para comprar, cestaria feita com palha e tingida com frutas, em vários tons.

Na comunidade de Anã moram 96 famílias, que cultivam macaxeira (mandioca), pescam e criam galinhas. Ao chegar, os moradores explicam que Anã se refere ao nome de uma estrela, e portanto, se traduz por brilho e encantamento. Atenciosa e sorridente na hora de receber os visitantes, Maria Odila Duarte Godinho, de 68 anos, com sete filhos e nove netos, conta que morou muitos anos em São Paulo, de 1971 a 2000, trabalhando como costureira. Re à terra natal “graças a Deus” e explica: “Aqui, eu vivo”.

Depois do bate-papo, Maria Odila chama para almoçar e se orgulha dos peixes assados e da galinha do quintal preparada com gosto e caldo delicioso. Na sobremesa, serve o doce de farinha de tapioca em cuias que deixa um sabor de quero mais. Na hora de dar a receita, a nativa pede desculpas por não ter uma medida certa de ingredientes – “faço tudo na mão”, e como está conectada com o mundo, manda depois a receita pelo Whatsapp.
Se comer muito, não se sinta culpado, nem com DPP ou “depressão-pós-prato”, brincadeira que corre de boca em boca. Na verdade, em Anã, acredite, a vida corre em outro ritmo. 

O repórter viajou a convite da Secretaria Municipal de Turismo de Santarém (Semtur) e Secretaria do Estado de Turismo do Pará (Setur-PA)

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