Os índios tupinambás da Ilha de Cururupeba (hoje conhecida como Madre de Deus), no litoral baiano, tinham como hábito promover comilanças a cada vitória, na tentativa de banir os colonizadores portugueses do local.
Comiam mandioca preparada de diversas formas, incluindo bebida alcoólica feita a partir da raiz fermentada, o caxiri.
As informações são de Ricardo Amaral e Robert Halfoun, autores do recém-lançado livro Histórias da gastronomia brasileira, que parte dessa espécie de mito fundador da culinária nacional e chega até os dias atuais, com perfis de alguns dos principais chefs do país.
No meio desse longo intervalo, outros personagens ajudam a costurar as décadas, como dom João VI (que guardava nacos de frango nos bolsos), Manuel Querino (autor crucial para compreender a cozinha baiana) e Ofélia (apresentadora de antigo programa de culinária).
A intenção da dupla, que intercalou pequenos textos leves e receitas, foi pintar retrato da gastronomia brasileira por meio de relatos sobre aqueles que, cada um à sua maneira, contribuíram com ela.
Assim, cronologicamente, Amaral e Halfoun acabam por oferecer ao leitor versão própria dessa história, um caleidoscópio de trajetórias que chega a contemplar a criação da rede de lanchonetes Bob’s, no Rio de Janeiro, muito antes (27 anos) da chegada do McDonald’s ao Brasil.
“O brasileiro tem gama de influências curiosas. Os índios eram espertos em matéria de comida, deixaram uma boa base das cozinhas regionais. Os portugueses trouxeram sua comida, que foi adaptada à dos nativos. Já a família imperial trouxe a França para o Brasil.
Basta dizer que todos os menus eram escritos em francês. Até mesmo o último dos acontecimentos, o inesquecível Baile da Ilha Fiscal, teve seu banquete todo em francês. O brasileiro à mesa é eclético. Ele preserva tradições regionais, mas aceita a inovação com entusiasmo”, diz Amaral.
RODÍZIO
Entre as várias curiosidades apontadas pelo livro está, por exemplo, a gênese do rodízio, tipo de serviço de carnes hoje conhecido mundialmente.
Ele não teria sido inventado, mas percebido pelo gaúcho Albino Ongaratto na sua Churrascaria 477, em Registro, no Paraná. Em 1968, uma multidão de fiéis saiu de festa católica ali perto e deixou os garçons da casa completamente perdidos com tantos pedidos simultâneos.
Quem pediu picanha comeu linguiça, quem queria costela recebeu maminha e o dono, então, resolveu servir de tudo a todos.
Casos como esse são somados a perfis de chefs significativos na segunda parte do livro. Foram selecionados nomes como os de Laurent Suaudeau, Roberta Sudbrack, José Hugo Celidônio, Jun Sakamoto, Edinho Engel e, sem deixar Minas Gerais de fora, Nelsa Trombino, que apesar de paulista comanda um dos principais restaurantes mineiros do Brasil, o Xapuri, em Belo Horizonte.
Talentos mais jovens também foram contemplados, a exemplo de Onildo Rocha, Thiago Castanho, Manu Buffara e Rafael Costa e Silva.
“Antigamente, quem mandava na cozinha era o dono ou gerente do restaurante. Eles ditavam o conceito e eram detentores das receitas. Os chefs eram meros fritadores de bifes.
Dos anos 1940 para cá, as coisas evoluíram lentamente. Essa nova geração de chefs é superpreparada e há colaboração entre eles, troca de informações e coleguismo cada vez mais raros em qualquer atividade.
Se ele, com tamanha experiência, arriscaria uma previsão sobre o futuro gastronômico do país? “Essa nova elite aplicada, estudiosa e criativa vai dar muita alegria às mesas brasileiras. Nosso viés é de super alta. Os próximos anos serão de consolidação! As grandes cadeias de fast-food sucumbirão. A nossa gastronomia de boteco prevalecerá. Até mesmo o hambúrguer será consumido neles. Cá entre nós, muito mais suculento e gostoso”, responde.
Reflexo cultural
O italiano Massimo Montanari é organizador, ao lado de Jean-Louis Flandrin, de um dos livros mais conhecidos de quem estuda as tradições da gastronomia, História da alimentação.
Suas quase 900 páginas são um tratado valioso a respeito, reunindo 42 especialistas em torno de temas como a função social dos banquetes, a oposição entre gastronomia e dietética e a relação entre sistemas alimentares e modelos de civilização. Tudo organizado cronologicamente, partindo da pré-história.
É de leitura menos densa Histórias da mesa, que Montanari lançou dois anos atrás e acaba de ganhar edição brasileira. Já no prólogo, ele avisa:
“Histórias verdadeiras e inventadas se alternarão, mas trataremos todas elas da mesma maneira: como histórias possíveis, espelhos de um mundo, de uma sociedade, de uma cultura. Pois o imaginário também faz parte – e como! – da realidade”.
Ele apresenta, então, “22 capítulos-causos” ambientados na Idade Média e Renascimento, nos quais retrata personagens como o imperador Carlos Magno, São Francisco de Assis e o escritor Dante Alighieri.
Este último, por exemplo, surge como convidado do rei Roberto I para uma ceia em Nápoles, no século 14, e choca os presentes por jogar sobre as próprias roupas vinho e pedaços de carne.
Nessa e nas demais histórias do novo livro, a intenção de Montanari é a mesma que deixa clara nas obras que assina ao longo de sua carreira: sensibilizar o leitor para o fato de que uma refeição, seja qual for, carrega conjunto de significados que extrapola o mero ato de comer. A diferença é que, desta vez, ele trouxe o elemento ficcional e não deixou evidente onde estabeleceu a fronteira da ficção.
HISTÓRIAS DA MESA
De Massimo Montanari
Editora Estação Liberdade, 232 páginas, R$ 42
HISTÓRIAS DA GASTRONOMIA BRASILEIRA
De Ricardo Amaral e Robert Halfoun
Editora Rara Cultural, 416 páginas, R$ 59,90