Leia Mais
Pequenos empreendedores abrem mercadinhos charmosos e com diversidadeChefs de BH vão fazer grande churrasco de boi da raça wagyu no Jardim Canadá neste fim de semanaPizzaria La Vera aposta na simplicidade e em diferencial para atrair clientesRomeu sem Julieta: cozinha mineira perde sua maior estrelaLivros 'Histórias da gastronomia brasileira' e 'Histórias da mesa' apresentam um caleidoscópio da culináriaRestaurante indiano de BH lança food truckCacho de uvas é vendido por R$ 37 mil no JapãoNovo restaurante japonês de BH serve sushi diretamente sobre o balcãoJabuticaba, ora-pro-nóbis e banana estão em pratos do festival Como Sabará“É a festa mais tradicional da cidade. Não existe vaga em hotel ou pensão, e na roça não fica ninguém. Vou para procissão, não para cozinhar, mas é capaz de alguém me pegar para ir para a cozinha. Mesmo velha, ainda dá para cozinhar”, brinca ela.
Dona Lucinha pensa até em publicar outro livro, mas enquanto a ideia não é realizada, sua preocupação atual é com o que os parentes e amigos deverão lhe pedir quando, finalmente, puser de volta os pés no Serro. Comidas, é claro, entre elas uma trabalhosa sobremesa batizada com o nome da primeira Miss Brasil, Zezé Leone: uma camada de creme amarelo abaunilhado e outra de clara em neve firmada com gelatina, nas cores branca e rosa (aqui, um toque de vinho do porto). “Minha Nossa Senhora do Rosário! Se eu disser que não farei, eles morrerão de paixão. E se um souber que eu fiz e não o chamei, dá uma briga horrorosa”, diz.
Entretanto, é com certo prazer que ela revela apreciar, ainda hoje, os preparos complicados.
É impressionante ouvi-la falar sobre os preparos das receitas que aprendeu a dominar ao longo das décadas. Não há tanta minúcia em meio às palavras, mas ouvi-las deixa a sensação de ter acesso a um conhecimento que é mesmo de outra época, bem guardado, precioso. “Leitoa, por exemplo, a gente aprende e não esquece mais. Tem de ser bem pururucada.
O mesmo vale para o pires no fundo do tacho de doce de leite (para evitar que derrame) e para o refogado, para ela a etapa mais importante de praticamente qualquer prato da cozinha mineira. “Refogado é amor na panela. Gordura quente, mas não demais para não queimar o refogado. E pouca gordura. Dourar primeiro o alho para soltar o perfume e passar para os ingredientes que virão por cima. Primeiro sal com alho, depois a cebola. Pimenta tem de saber se as pessoas vão querer. Salsa e cebolinha só no final.
Não por acaso, nos vários banquetes mineiros que preparou em eventos no exterior, fez questão de levar daqui todo o alho de que precisou. “Ele tem de ser plantado com esterco de curral para dar perfume. Quando cozinhava com o alho do exterior, não achava que dava aquele perfume no refogado. O nosso, principalmente o mineiro, é que é bom. O refogado é a essência, daí o sabor da nossa comida. Nessas viagens, levávamos coisas escondidas, como se fosse roupa. Já barraram carne, mas já consegui passar com queijo. Doces me dão muito trabalho e eu sempre precisei levar daqui”.
BANHA
Esse apego não apenas aos ingredientes, mas aos modos de fazer a afasta da comida mineira feita hoje na cidade. “Até hoje não consegui comer essas coisas bem enfeitadas, bem bonitas e sem sabor.
Dona Lucinha não é totalmente inflexível, mas não abre mão facilmente daquilo em que acredita. Em sua casa, a comida é refogada em óleo vegetal e ela acredita que o problema, nesse caso, não é tanto a quantidade, mas a qualidade da gordura usada. “Gordura de porco é tradição, mas agora está mudando. Usavam-se conchas dela na comida sem necessidade. É preciso apenas o suficiente para tampar o fundo da panela e não queimar o refogado”, diz. Seu avô, médico, morreu aos 95 anos, comendo apenas alimentos refogados em gordura suína e, claro, maldizendo óleos vegetais.
“Meus filhos que nasceram por último se acostumaram com a comida sem gordura de porco. Sentem a diferença, reclamam. Às vezes usamos misturado, sem que eles percebam, e dá certo. A aceitação está voltando e temos de ir introduzindo aos poucos. Porco nunca fez mal e toda a vida foi a carne que a gente mais comia”, afirma. No dia da entrevista, ela havia almoçado arroz, feijão, bife e chuchu, “além de alguns torresmos sequinhos”. De salada ela não gosta, pois morre de aflição só de imaginar hipotéticas lagartas sobre as folhas – mesmo sendo muito rigorosa com higiene.
MOITA
“Tenho de começar a bolar outro livro”, anuncia. Ela ainda não sabe bem como será o novo volume, mas sabe que lacunas quer preencher com a futura publicação: “Não é para ser mais moderno, mas mais amplo, em função das fases por que já passamos nos nossos restaurantes. As épocas, a evolução, as viagens. Cumpri minha missão, mas ela não está guardada. O que não está em livro o vento leva”. Será algo mais biográfico, talvez titulado com expressão valiosa que cunhou em seus tempos de professora na zona rural do Serro: Merenda escondida.
Crianças humildes, que iam para a escola descalças, eram orientadas pelos pais a guardar sua comida em moitas próximas à escola, por vergonha da simplicidade do que levavam. “Um dia, chamei os pais à escola e preparei uma mesa com todos esses alimentos para recebê-los. Ficaram surpresos por achar que não era comida para servir a visitas. Daí meu trabalho de mostrar esse tipo de alimentação. Hoje, sou convidada por pessoas como essas para comer a comida mineira deles. As pessoas passaram a acreditar nessa comida e as coisas evoluíram”, orgulha-se.