Um dos pioneiros da cerveja artesanal, Marco Falcone tornou-se referência na produção da bebida

Cervejeiro vem difundindo conhecimento e articulando fabricantes do setor em todo o país

por Eduardo Tristão Girão 22/06/2016 08:00
Beto Novaes/EM/D.A Press
No sítio dos pais, em Ribeirão das Neves, Marco Falcone produz as premiadas Monasterium e Vivre pour Vivre e vai ampliar a capacidade (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)
Outro dia, folheando Craft beer world, livro do especialista em cerveja Mark Dredge, Tiago Falcone exclamou com espanto: “Que isso, pai?! Você viu isso aqui?”. O jovem de 28 anos, hoje mestre-cervejeiro da Beavertown, na Inglaterra, é filho de Marco Falcone, um dos pioneiros da cerveja artesanal em Minas Gerais e figura central deste movimento no país, à frente da Falke Bier. Da sua fábrica, em Ribeirão das Neves, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, sai a Monasterium, cerveja refinada (e premiada) que mereceu estar entre as 350 melhores do mundo, na opinião do tal autor gringo.

Esse é apenas um dos vários exemplos que comprovam, no papel, aquilo que pode ser observado na prática: Marco Falcone se transformou numa espécie de “paizão” dos cervejeiros brasileiros (dos que fazem e dos que bebem) e sua fama já chegou ao exterior, graças à forma generosa com que se dedica a difundir conhecimento e a defesa apaixonada do setor. Ele também é citado em outras obras importantes, como Mastering homebrew (cujo autor, Randy Mosher, se refere a ele como “xamã”) e The world atlas of beer, lá fora, e Cervejas, brejas e & birras e Brasil beer, no Brasil.

Recentemente, num dos vários eventos cervejeiros de que participa Brasil afora, Falcone foi ao banheiro e, lá chegando, ouviu: “Pô, tô mijando ao lado do Marco Falcone!”. Ele acha graça de situações como essa e garante reagir sempre com bom humor e humildade. Tudo porque ele tem uma missão na cabeça: “Quando começamos, em 2004, não tínhamos a menor chance no mercado, pois as grandes cervejarias aniquilavam tudo. A partir do momento em que começamos a ensinar cerveja, tudo mudou. Fundamos confrarias e associações de cervejeiros caseiros aqui e em outros estados”.

Ele conta que duas gigantes cervejeiras, Ambev e Brasil Kirin, já lhe procuraram para tentar comprar sua fábrica, propostas que ele assegura ter negado. “Faço o que quero. Hoje (quinta passada), por exemplo, vou participar de um grupo que vai beber só cervejas ácidas. Este ano, já viajei para vários lugares e, semana que vem, vou ao Espírito Santo para falar com o governo de lá, que implementará programa voltado à cerveja especial. Aliás, estou num projeto do governo mineiro que pretende transformar BH num polo mundial de cerveja. Estou disponível para essas coisas”, justifica.

A ordem é articular. Membro da diretoria do Sindicato das Indústrias de Cerveja e Bebidas do Estado de Minas Gerais, Falcone também divide o tempo como professor na Escola Superior de Cerveja e Malte (Blumenau, SC), o Science of Beer Institute (Florianópolis, SC) e a Academia Sommelier de Cerveja, que fundou com outra expert do ramo, a jornalista Fabiana Arreguy, na capital mineira. Desde 2011, a dupla já formou cerca de 350 profissionais em cursos regulares e a décima turma está prestes a começar. Não raro, aparecem na cidade interessados vindos de longe para aprender – o último veio do Piauí.

“O sommelier de cerveja precisa ser, antes de tudo, um contador de história. É assim que se atrai as pessoas e que elas vão confiar no que você faz. Não estou aqui só para vender cerveja, mas para difundir cultura e fazer apologia do ideal ‘beba menos, beba melhor’”, diz. E, antes de qualquer comentário a respeito, emenda: “A cerveja, além de repor 37% das nossas necessidades alimentares, é uma bebida saudável, rica em vitaminas do complexo B, com teor alcoólico baixíssimo, promove alegria, azeita as relações, é o maior lubrificante social conhecido. Como diria Plutarco na Grécia antiga, ‘ela aumenta e alimenta as amizades’. Isso é cerveja”.

MEIA CALÇA Não havia qualquer tradição na família de Falcone, que completará 53 anos neste sábado, em se tratando de cerveja. Ele sempre apreciou a bebida, mas resolveu cortá-la quando o primeiro dos três filhos, Tiago, nasceu. “Eu tinha 23 anos, era recém-casado e estava numa dureza danada. Precisava comprar leite e fralda”, lembra. Entretanto, amigos lhe disseram que havia na cidade um médico que costumava trazer matérias-primas da Alemanha para fazer cerveja em casa, o que significava, na prática, beber pela metade do preço. Foi assim que começou a fazer cerveja, no sítio dos pais, onde hoje está a Falke Bier.

“Todo mundo que viajava trazia livros ensinando a fazer cerveja para mim. E eu também inovava, né? Desenvolvi técnica de torrar malte em forma de pizza, dentro do forno doméstico mesmo, por exemplo. Além disso, reparei que todo fim de semana minha ex-mulher furava uma meia calça. Passei a usá-las de filtro para separar o bagaço do malte da parte líquida. Meus amigos apelidaram minha cerveja de ‘Vivarina’”, conta. No fim dos anos 1980, o “médico-fornecedor” se mudou da cidade e deixou “órfãos”, mas a semente da cultura cervejeira havia sido plantada.

Em 2000, quando ainda atuava como representante de empresa de medidores de energia, foi trabalhar numa feira do setor em Hanover, na Alemanha. Obviamente, foi beber cerveja na primeira oportunidade. “No primeiro gole, percebi que era igual a que eu fazia aqui. A gente achava que o que era bom era a Brahma, Skol e Antarctica. A minha, que ninguém conhecia, era considerada mais ou menos. Quando vi que a cerveja alemã era como a minha, peguei minha grana de reserva e passei três meses lá. Fui visitar cervejarias na Alemanha toda e em outros países da Europa”, lembra.

Retornou à cidade alemã nos três anos seguintes, sendo que, no último, voltou com o projeto da sua própria cervejaria na mala. Convenceu os irmãos Ronaldo (que tinha loja de conserto de moto) e Juliana (que trabalhava como secretária) a chutar o balde e usar as reservas da família para erguer a fábrica. Viraram sócios e começaram a vender o que, 12 anos atrás, era pouco difundido no estado: chope puro malte, sem adição de cereais não maltados como milho e arroz, usados pelas grandes marcas que dominam o mercado.

Com o tempo, o trio diversificou as receitas, ampliou os pontos de venda e apostou em garrafas. Pouco a pouco, vieram prêmios, como o Tecnobebida, de 2008, conferido à Monasterium, cerveja inspirada em receita de monges do século 19, maturada numa adega subterrânea e ao som de canto gregoriano, considerada o produto mais inovador do ano entre centenas de vinhos, cachaças, águas e outras cervejas. “Somos a primeira cervejaria brasileira a arrolhar cerveja numa garrafa de champanhe”, acrescenta Falcone. A propósito, também é deles a cerveja nacional mais cara do mercado, a Vivre pour Vivre, feita com jabuticaba e vendida a cerca de R$ 300.

Atualmente, a fábrica passa por ampliação e, em seis meses, a produção passará de 20 mil para 70 mil litros por ano. Paralelamente, dois de seus filhos solidificam a tradição cervejeira iniciada pelo pai: ano que vem, Tiago partirá para viagem de bicicleta produzindo cerveja ao longo de dois anos pela Europa, Estados Unidos e Ásia; por sua vez, Max, de 19 anos, é vendedor da Casa Olec (que comercializa insumos cervejeiros) e já dá aulas de fabricação caseira de cerveja. Ele não tem dúvida: “Se não agirmos, as grandes cervejarias vão botar uma pá de cal na gente”.

Em tempo, o cineasta Helvécio Ratton tem visitado a cervejaria de Falcone e há possibilidade de que seja feito um filme sobre o movimento cervejeiro nos moldes do que foi feito sobre o queijo minas artesanal.

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