Isabela Raposeiras, barista de renome internacional e idealizadora da Coffe Lab, uma das melhores cafeterias do mundo (sediada em São Paulo), fala sobre o uso culinário do café. “Trata-se de um ingrediente ótimo, que destaca a receita e funciona também como especiaria, tempero. No entanto, é complicado porque amarga fácil. Então, para cozinhar bem usando o produto é preciso pesquisar sobre a qualidade do grão, suas facetas, e também entender de que forma pode ser harmonizado com outros ingredientes”, pondera.
Para começo de conversa, a barista indica apenas o uso de cafés especiais (cujas características são submetidas a rigorosos processos de avaliação) e ressalta que, em sobremesas, o ingrediente faz muito sucesso quando aliado a lácteos ou surpreende se associado a castanhas ou frutas. Outra sugestão é usar apenas o ingrediente moído na hora para manter as características originais do grão.
A especialista assina capítulo do livro Chefs Café (Carlos A. Andreotti e Melhoramentos, 268 páginas, R$ 143), obra que traz 97 receitas de sobremesas, pratos principais e bebidas à base da especiaria. Idealizador da obra, Andreotti escolheu o tema pelo fato de ainda ser um assunto pouco explorado na alta gastronomia, mas ficou surpreso ao descobrir a desenvoltura dos chefs envolvidos no projeto. “A princípio, achei que a maioria das receitas seria de bebidas e doces, mas há uma série de pratos salgados que exploram o café em receitas a base de peixes, carnes bovina e suína, e ainda menos comuns, como pato e cordeiro, entre outras”, descreve. Apesar de pouco comum, a temática agradou. “A repercussão no mercado foi ótima. O livro vendeu bem, lançamos uma segunda edição comemorativa com a inclusão de mais três receitas, e conquistamos reconhecimentos importantes, como o Prêmio Jabuti”, ressalta o editor.
Na obra, a chef paulistana Janaina Rueda apresenta um prato que remete à memória afetiva, o carré de javali ao molho toffee (veja receita na página). “Faço uma homenagem ao café tentando resgatar algumas receitas tradicionais das fazendas onde o grão é cultivado. Não pode faltar uma farofa, como esta feita com uma farinha de milho bem artesanal e rústica. Aqui, é combinada com um carré de javali, que tem sabor levemente adocicado. O café ajuda a caramelizar o caldo de porco, transformando o molho num toffee aromático e com textura interessante.”
Carré de javali ao molho toffee
Ingredientes
400g de carré de javali, 4 colheres de sopa de azeite de oliva, 2 colheres de sopa de manteiga sem sal, pimenta-do-reino e sal a gosto. Para o molho toffee: 200ml de caldo de carne, 1 xícara de café de boa qualidade coado (50 ml),
2 colheres de sopa de conhaque.
Modo de fazer
Tempere a carne com sal e pimenta-do-reino a gosto. Enquanto o tempero penetra um pouco no carré, leve uma frigideira ao fogo. Quando estiver bem quente, coloque o azeite e comece a dourar os pedaços de carne. Assim que estiverem dourados dos dois lados, acrescente a manteiga e reserve. O molho: leve a frigideira ao fogo, flambe o conhaque, acrescente o caldo de carne, o café, e deixe reduzir até ficar quase no ponto de bala toffee. Acerte o sal e reserve. A farofa: leve uma panela ao fogo, derreta a manteiga, doure por 3min a cebola roxa picada em tiras finas, acrescente os ovos, a farinha de milho, e refogue por mais 1min. Junte o sal, a salsinha e a cebolinha. Finalização: coloque os carrés em uma travessa, espalhe o molho toffee de café por cima e sirva com a farofa de ovos.
Clássico revisitado
Em Belo Horizonte, o grão é usado com entusismo por chefs como Léo Paixão, responsável pelo comando da cozinha do Glouton.
Além de diferenciar uma receita de costela, ele está prestes a lançar no cardápio sobremesa que explora o famoso café com leite. A dupla origina um sorvete servido com cuca de coco e canudinho de laranja com doce de leite. “O mineiro
tradicionalmente toma a bebida, um clássico que revisito introduzindo o tuile com mousse de doce de leite de Viçosa e um bombocado de coco, receita da minha avó que não leva farinha de trigo”, descreve. Ainda segundo o chef, a combinação é muito suave, supercrocante e enriquecida por certa acidez. “Café com laranja resulta em combinação bem especial”, reforça.
Já em pratos de sal, o chef ressalta que o ingrediente é interessante principalmente pelo aroma tostado, quase defumado. O sabor é salientado quando combinado à carne da costela de boi assada e também defumada. “Faço um molho com o caldo de carne bem reduzido e adiciono açúcar mascavo e um espresso. A acidez do café dá vida ao prato”, destaca. O chef lembra ainda que o ingrediente casa muito bem com o sabor de carnes mais gordas, como de cordeiro ou de pato, cujo paladar mais acentuado harmoniza com a adstringência natural da bebida.
Para testar receitas em casa sem o risco de carregar no amargor, Paixão sugere duas formas de fazer o café ficar menos forte. Uma delas é colocar açúcar e outra é adicionar sal. A mistura, conta ele, tapeia o paladar, reduzindo a capacidade de percepção do amargo. “A característica mais ácida do café não sofre alterações”, garante, e acrescenta: “Indico até uma pitada de sal na xícara de espresso para quem gosta de sentir toda a potência da bebida”, sugere.