É com certa surpresa que se folheia o terceiro volume do livro Fartura – Expedição Brasil Gastronômico (Melhoramentos /Boccato), prestes a ser lançado pelos mineiros Rodrigo Ferraz e Rusty Marcellini. O registro da viagem para mostrar a cadeia produtiva da gastronomia (o caminho do alimento do campo à mesa) em Alagoas, Amapá, Espírito Santo, Paraná e Roraima enfoca o que, para muitos, pode ser absoluta novidade. Afinal, quantos sabem que damorida é uma sopa amazônica de pimentas, peixes e tucupi preto?
Fartamente ilustrado, o livro é bilíngue (português e inglês) e tem um capítulo por estado, com subdivisões que estimulam o leitor a imaginar o caminho da comida: biomas, produtores, tradições, feiras e receitas. A expedição dará origem também a um documentário (com direção e roteiro de Marcellini, que tem formação em cinema) a ser lançado até o fim do ano. As viagens servem, ainda, para embasar o Festival Cultura e Gastronomia Tiradentes (foi assim com os volumes 1 e 2). O terceiro volume orientou a programação da edição 2014 do festival, cuja 18ª edição termina amanhã, na cidade histórica mineira.
“Focamos em tudo o que acontece antes do chef. A gente precisa mostrar a cultura gastronômica que existe por trás de uma receita. A gastronomia vai muito além disso e o potencial da cozinha brasileira é muito grande. Aliás, o brasileiro não conhece o Brasil”, afirma Marcellini. Ampliar a cultura gastronômica do brasileiro, acredita, é o caminho para criar demanda e facilitar o acesso a itens como o mel de abelha nativa. “Muita gente sabe dizer se um risoto está bem-feito, mas não sabe diferenciar uma farinha da outra”, observa.
De fato, é um desfile de novidades. A não ser que o leitor more no Paraná, é pequena a chance de que saiba que cracóvia é um embutido de carne suína feito em Prudentópolis, cidade do interior do estado povoada por descendentes de ucranianos. O mesmo vale para a damorida, preparada a milhares de quilômetros dali, em Boa Vista, capital de Roraima, no extremo norte do país.
A propósito, vale destacar a iniciativa de explorar mais a cena gastronômica do Norte. No Amapá, por exemplo, a equipe visitou criador de tartaruga e se deparou com um impasse: é permitido comer a carne do bicho, mas é difícil encontrar abatedouros legalizados. Uma ex-proprietária de restaurante especializado foi localizada e ensinou a fazer farofa com a carne do quelônio – e no próprio casco.
A expedição realizada este ano, que contemplou Sergipe, Goiás, Tocantins, Pará, Maranhão e Piauí, forneceu “assunto” para montar toda a programação do festival, incluindo jantares, cursos e palestras – sem falar no próximo volume do livro, a ser feito no mesmo molde do anterior. Marcellini, que é curador do festival e coordenador das viagens gastronômicas, adianta que um dos pontos altos foi o café sertanejo da Fazenda Babilônia, a 20 quilômetros de Pirenópolis, em Goiás.
“Lá é feito um trabalho de recuperação de receitas como eram feitas há mais de cem anos. Bolos que levam uma semana para serem feitos, pois não levam fermento. Muito milho e mandioca, folha de bananeira para embalar e quase não se usa farinha de trigo, fora técnicas de quando não havia geladeira, como a da carne de lata. É um dos lugares que valem a pena viajar só para conhecer. Muitas coisas eram comida de viajantes que passavam por ali. É tudo maravilhoso”, conta.