A subdivisão da gastronomia mineira não é exatamente uma novidade. Dona Lucinha e sua filha Márcia Nunes, para ficar num exemplo só, já haviam dividido a cozinha do estado em “seca” e “molhada” (dos tropeiros e das fazendas) no livro a 'História da arte da cozinha mineira' por Dona Lucinha, de 2001. De lá para cá, o crescimento da gastronomia no país motivou um novo olhar para esse mapa, tendo ingredientes e produtos em primeiro plano. Outras delimitações apareceram a partir disso e a definição dessa cara é uma obra em progresso, tocada sobretudo por chefs que atuam de forma independente e empírica.
SABORES DE MINAS Um dos pioneiros nessa iniciativa é o chef Eduardo Avelar, que pesquisa a cozinha do estado há 15 anos e formulou a divisão citada acima (e no mapa nesta página) no contexto do projeto Sabores de Minas, editado pelo Estado de Minas.
Flávio Trombino, chef do Xapuri, um dos cinco restaurantes participantes do circuito, concorda com as demarcações desse mapa, mas sente falta de endosso oficial para a iniciativa. Na visão dele, é preciso deixar mais claro o conceito de terroir (conjunto de características naturais que influenciam a produção de bebidas e comidas) de cada região. “Ficaria mais fácil em termos de pesquisa e entendimento, tanto para quem é chef quanto para o público. A cadeia produtiva toda ganha com isso”, avalia.
Encarregado de criar um prato inspirado no cerrado mineiro, ele recorreu a livros do botânico francês Auguste de Saint-Hilaire, que viajou pelo estado no século 19 e catalogou diversas espécies locais. Uma delas é a pimenta-de-macaco, especiaria que Trombino é dos poucos a usar, empregada no cozido que preparou para o evento. “Ele a achou mais saborosa que a pimenta-do-reino e menciona um prato parecido com esse que fiz, à base de carnes salgadas e secas, ao relatar viagem pelo Norte de Minas”, conta o chef.
Trombino acaba de voltar de evento gastronômico em Fortaleza (CE), onde comprovou que o interesse por essa discussão não está restrito aos profissionais do ramo. “Levei vinagre de jabuticaba, rapadura e pimentas. As pessoas ficaram encantadas, queriam comprar tudo o que eu tinha levado e perguntavam de que região eram as coisas. Nossos queijos artesanais são o melhor exemplo disso”, conta. Em março, ele promoveu no Xapuri festival gastronômico baseado nos terroirs central, norte, sul, leste (Vale do Mucuri) e oeste (Triângulo Mineiro). “Essa divisão que usei é de entendimento mais fácil, mas a atual é mais específica”, analisa.
Jaime Solares, da Borracharia Gastropub, criou um filé com requeijão moreno, salada de ervas e farofa de castanhas para o circuito (a região que lhe coube foi a do Espinhaço) e acredita que o mapa gastronômico proposto pelo evento seja um ponto de partida. “Precisamos de algumas subdivisões, como no Vale do Mucuri, que merece ter uma classificação própria pelos requeijões, cascudo e boi pré-salé”, defende. Esse requeijão, a propósito, é usado há bastante tempo na casa.
Outro chef que aposta na divulgação de produtos regionais é Marcos Proença, do Patorroco. Ele tem um sítio em São Bartolomeu, próximo a Ouro Preto, e está habituado não apenas a pesquisar os ingredientes do entorno, mas também a comer com os moradores locais. Prestes a abrir empório com produtos de lá ao lado de seu bar, ele inspirou-se nas verduras que tem descoberto (como o cariru) para fazer um pesto de ora-pro-nóbis, guarnição da rabada desossada com farinha de torresmo e creme de moranga com queijo de minas, receita representante da Região Central.
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Para o sociólogo Carlos Dória, autor de livros importantes sobre gastronomia, divisões como essa são válidas quando se estabelecem diferenças consistentes dos pontos de vista culinário e histórico. “São válidas as tentativas de divisão que tenham por base história, uniformidade ecológica e identificação de pratos”, completa. Ele defende o conceito de “manchas culinárias” que não obedecem as linhas de divisão política do mapa e tem se interessado ultimamente por delimitação feita pelo IBGE usando elementos da literatura nacional, o Atlas das representações literárias das regiões brasileiras.
Na visão dele, essa pesquisa tem pouca utilidade turística, servindo sobretudo a quem se dedica à pesquisa. Rusty Marcellini, pesquisador e professor de culinária (também escreveu livros), discorda: “Acho que isso deveria estar muito atrelado à indústria do turismo. Hoje, os chefs estão habituados a receber produtos, sem ir atrás deles, e o público não se sente muito estimulado para fazer esse tipo de turismo gastronômico. Há trabalhos isolados no interior, mas, de forma geral, ainda é muito fraco”.
O gastrônomo Eduardo Maya, à frente do Aproxima, também acha que esses estudos contribuem para fomentar o turismo em torno da comida e despertar a curiosidade em relação ao trabalho dos chefs. Mas faz uma ressalva: “A Estada Real foi um dos maiores projetos turísticos que Minas já teve. Quando o governo entrou, escangalhou tudo. Isso tem de ficar mais com a iniciativa privada e associações. É importantíssimo o governo apoiar e dar chancela, mas sem botar a mão”.