Texto da New York Times Magazine publicado nesta quarta-feira, 27, mostra o encantamento do colunista Francis Lam – um dos jurados do programa 'Top chef masters' – pelo sabor e pela história do principal prato da culinária brasileira. Para Lam, a feijoada é a cara dos pratos típicos do sudeste dos Estados Unidos, “uma festa na tigela”, cheia de significados, texturas e sabores. Confira abaixo a íntegra do texto:
Comida brasileira para a alma
Francis Lam - The New York Times Magazine
Eu pensava que conhecia feijoada, aquele maravilhoso buraco negro de carnes que é o prato mais conhecido da culinária brasileira: linguiça, costelinha e outros cortes gordurosos boiando no feijão preto. Uma festa na tigela. Quando era adolescente, li uma receita do prato e meus olhos se arregalavam mais a cada carne que entrava na lista de ingredientes. E eu sonhava cozinhar o prato um dia. Anos mais tarde, na escola de culinária, cozinhei, misturando o gosto doce e almiscarado do feijão preto ao ainda mais almiscarado sabor dos músculos e ossos. Então, conheço esse prato. Mas acontece que ele é ainda mais familiar para mim, como um americano, do que eu pensava.
Recentemente, Michelli Guimaraes Knauer me levou a uma feijoada reveladora em Astoria, bairro onde vivem muitos brasileiros em Nova York. Knauer foi criada no Rio e veio para Nova York 14 anos atrás, quando ela percebeu que crescer com um pai químico e perfeccionista e uma mãe que escrevia cada detalhe do que cozinhava para o jantar significava que ela deveria ser uma grande cozinheira. Fomos a um dos seus restaurantes brasileiros prediletos, um lugar peculiar chamado Villa Brazil Cafe Grill. As mesas estavam lotadas de brasileiros falando português, mas eu bati o olho na comida e achei que estivesse no Alabama.
Sobre a mesa de vapor havia uma panela de quiabo ensopado em sua própria baba. Havia vagens. Havia pães de milho salpicados com bacon e cebola. Havia arroz. E havia feijoada, claro, uma gororoba maravilhosa que Knauer apontou enquanto mandava: “Mergulhe aí e encontre um bom pedaço derretendo”! Com isso, ela queria dizer: um pedaço de pele de porco ou uma orelha ou o rabo que eu pesquei, transformados pelo tempo e pelo calor em uma suculenta gelatina. Essa quintessência da culinária brasileira se parece muito com a comida sulista americana. Ambas parecem alimento para a alma.
Liguei para Jessica B. Harris, reconhecida autora de 12 livros sobre a culinária da diáspora africana. Entre eles, um chamado 'Saboreando o Brasil'. “O Brasil e os Estados Unidos são como imagens espelhadas”, ela disse. “Nosso Sudeste é como o Nordeste deles e a maior parte da comida, da música e da cultura popular das duas regiões sofreram forte influência da África.” O quiabo vem da África. Grande parte da cultura de arroz foi implantada no Novo Mundo pelos africanos. As vagens, embora nativas da Europa, foram adaptadas pelos africanos e usadas em substituição às suas folhas verdes.
Mas os laços entre as comidas brasileira e americana não param nas plantas; se estendem pelas plantações. “A feijoada vem da dieta dos escravos”, continuou Harris. “É um prato de cocção lenta, o tipo de coisa que você deixa em preparo enquanto trabalha. É obter o melhor do pouco que se tem.” Eu disse algo sobre focinho e os joelhos do porco – como literalmente comer dos pés à cabeça. “Mas você notou a mistura de carnes?”, ela perguntou. “A escassez de partes nobres e a fartura de linguiça e miudezas? Soube que a tradição de misturar as carnes vem de um período em que os escravos traziam as sobras das cozinhas de diversos senhores para preparar sua própria refeição.”
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Mas essa história tem outro lado também – ou, pelo menos, uma continuação deste. O desespero deu origem à delícia e a delícia tem significado para as pessoas que cozinham o prato, comem dele, e colocam nele sua identidade.
Alguns dias depois, me encontrei com Knauer de novo, desta vez na casa dela, onde ela estava me mostrando como fazer sua “feijoada completa”, com couve refogada, arroz, fatias de laranja e farofa, farinha de mandioca torrada e temperada, legado dos índios.
Tínhamos considerado fazer a receita sem os cortes mais exóticos, para os leitores mais enjoados, porque ela já é longa o suficiente e não queríamos que muita gente tivesse medo de cozinhar esse prato. Mas sabíamos que, quando os pés e rabos começassem a derreter na panela e a essência suína se espalhasse no ar, poderíamos nos orgulhar de termos feito a coisa certa.
Knauer convidou alguns amigos, botou reggae para tocar e calculou até quanta comida cada pessoa levaria para casa depois da refeição. Um pouco depois, estávamos comendo, cada garfada uma combinação diferente de sabores e texturas: a gordura aveludada da pele com o doce toque da laranja. O feijão cremoso com a farofa ao alho crocante. O estalar amargo da couve refogada com o arroz cozido. É uma experiência que se mantém muito interessante por muito tempo.
“A comida brasileira é cheia de histórias, de escravos e colonização”, disse Knauer. “Mas agora a tradição é fazer um almoço reforçado, comer feijoada, passar o dia todo entre amigos, assistir a novela e comer feijoada de novo. Você faz feijoada nos finais de semana porque é uma espécie de refeição com vírgulas. Mesmo os amigos que vivem aqui há mais de 20 anos não conseguem abandonar a tradição.” Nos sentamos sorridentes, satisfeitos e sonolentos. A coisa é tão boa – pensei – que agora a gente precisa descansar do prazer.