Nome de ponta da gastronomia brasileira, Alex Atala critica falta de incentivos do governo

Chef paulista diz que o governo ignora o potencial de suas tradições culinárias. Para ele, alimentação deve fazer parte dos currículos escolares

por Eduardo Tristão Girão 17/01/2015 00:13
Nelson Almeida/AFP
Alex Atala critica lei que proíbe a utilização de mel produzido por abelhas brasileiras (foto: Nelson Almeida/AFP)

Mais conhecido chef brasileiro, Alex Atala lançou recentemente a campanha “Gastronomia é cultura/Eu como cultura”, mobilizando rapidamente milhares de pessoas nas redes sociais. O objetivo é reunir 1 milhão de assinaturas para pressionar o Congresso a aprovar um projeto de lei que reconhece a gastronomia como manifestação cultural. Se isso ocorrer, projetos na área poderiam ser beneficiados pela Lei Rouanet, por exemplo. Por meio de seu instituto, o Atá, que usa para defender outras causas importantes, ele mostra que apenas cozinhar é pouco para um chef.

O que você conseguiu com o Instituto Atá até o momento?

Posso falar de duas grandes metas, que talvez valham mais do que 20 pequenas. Temos um trabalho com a ONG Gastromotiva em penitenciárias femininas. Das quase 80 meninas que já fizeram o curso, temos quatro trabalhando através da cozinha. Esse projeto pode virar política pública, e isso é o maior anseio de um instituto. Um segundo gol é o trabalho com a água. Tenho um amigo chamado Jon Rose que era surfista profissional e sempre levava em suas viagens filtros de água feitos pelo pai. Quando estava na Tailândia, houve o tsunami e esses filtros salvaram muitas vidas. Nos juntamos a esse projeto e já levamos água para cerca de 200 mil pessoas na Amazônia. É incrível pensarmos que um dos lugares com mais água no mundo não tem água potável. Lá, o grau de transmissão de doenças pela água é grande. O filtro não precisa de eletricidade, funciona por gravidade. Cada um custa US$ 25, produz água potável para 100 pessoas por dia durante cinco anos. O número de pessoas atendidas poderia ser bem maior – só não é porque a aprovação na Anvisa custa dinheiro e não tenho esse dinheiro. Além disso, há metas internas, uma delas ligada ao mel. Todo o mel que comemos na vida vem de uma abelha que não é brasileira, a Apis mellifera, de origem europeia e africana. Em 1952, surgiu uma legislação dizendo que só pode ser chamada de mel a substância com até 20% de umidade. Isso quer dizer que ela é estável, ou seja, se for deixada na sala ou na geladeira, não há mudanças representativas em sua composição química. Os méis de abelhas brasileiras, que são cerca de 300 tipos, têm em torno de 30% a 35% de umidade – então, fermentam. São vivos, como queijos e vinhos.

Qual é o problema da lei?

Ela foi aprovada sem estudos profundos, dizendo que esse tipo de mel das abelhas brasileiras poderia trazer doenças se consumido. Repetindo: não há estudo científico comprovando que ele faça bem ou mal à saúde. Vale a pena lembrar dos queijos de leite cru mineiros. Na Europa, também houve problema com esses queijos. Como resolveram isso? Entendeu-se que, uma vez que representam uma cultura e que séculos de consumo nunca mataram ninguém, a cultura salvaguardava a existência do produto. Os méis brasileiros fermentados são usados pelos índios como remédio. Por que nossa cultura vai continuar ignorando uma sabedoria ancestral? Sou a favor da regulamentação dos produtos, não acho que temos que trazer as coisas diretamente do mato. A conservação da natureza não é feita dessa forma. Mas tenho certeza de que não é ignorando um saber brasileiro e ancestral que vamos conseguir. A diversidade na cozinha tem de ser defendida. Não podemos todos comer o mesmo arroz, a mesma soja, o mesmo milho. A cozinha pode ser uma grande ferramenta para a defesa disso. Quando consumimos diversidade, ela começa a ser defendida e passa a ter valor adquirido.

Mas isso esbarra em certificações como aquelas feitas pelo Sistema de Inspeção Federal (SIF)...

Esse é nosso grande duelo nos próximos anos. O SIF está muito focado em produtos de origem animal. A segurança alimentar é um ponto importante, mas não deveria ser limitador. É preciso abrir e discutir algumas normativas, como, por exemplo, o uso de sangue de frango para poder fazer um dos alicerces da cozinha mineira. Pela segurança alimentar vamos matar uma parte do patrimônio da cozinha brasileira? Ou continuaremos na ilegalidade, servindo frango ao molho pardo como se fosse cocaína? Uma nova regulamentação urge na cozinha brasileira.

Você sempre reclama da falta de apoio governamental para a gastronomia brasileira. O Atá pode ajudar a estreitar essa relação?

A ideia é que o Atá também seja um interlocutor. Por meio das embaixadas, países sul-americanos, como Argentina e Peru, apoiam seus chefs quando eles viajam para o exterior levando ingredientes locais. O Brasil jamais deu apoio a nenhum chef. Não peço para mim, pois já estou tentando entrar para a reserva. É minha função, antes disso, abrir portas para a geração que vem aí. É muito difícil encontrar um país com tantos novos talentos como o Brasil. Não falo de São Paulo, Minas e Rio apenas. Falo também de Felipe Schaedler, de Manaus; dos irmãos Castanho, em Belém; de Manu Buffara, em Curitiba. Citar 20 ou 30 nomes de jovens chefs brasileiros é pouco. Esses meninos vão ganhar o mundo – são embaixadores de uma marca chamada Brasil. Se as embaixadas não puderem ajudar, pelo menos que não atrapalhem.

Você considera o chef mineiro Felipe Rameh, que já trabalhou com você, um desses nomes?


Não tenho dúvida disso. As referências gastronômicas mundiais, como França, Japão, Itália e Espanha, chegaram ao patamar em que estão não por ter um bom chef, mas muitos chefs bons. Isso, Minas e o Brasil têm. Quando as pessoas entenderem que precisamos de um time, não de um artilheiro, a gastronomia brasileira será maior. Ela passará a existir efetivamente quando não for mais dos chefs, mas do povo. É um tanto populista dizer isso, mas é a verdade. No Peru e no México, o taxista discute gastronomia. A apropriação da cozinha pela população é a última barreira que o Brasil tem de vencer. As pessoas que passam na porta do Alma Chef (que tem Rameh entre os sócios) e do D.O.M. (restaurante de Atala, em São Paulo) devem olhar essas casas não como lugares de pessoas ricas que não as representam, mas como embaixadas da sua própria cultura e que a todos pertencem. Essa seria a grande meta.

O Brasil pode colocar a gastronomia como cultura, incluindo-a no ensino em escolas?

Seria fundamental. Se conseguirmos educar melhor e parte desse educar for incluir o alimento na agenda escolar, será ótimo. Tenho um filho de 20 anos e gêmeos de 12. O Pedro, o mais velho, é da geração McDonald’s. Ia com ele, pois sempre entendi que o proibido fascina. Provocava o raciocínio dele, mostrando que não ia pra lá comer, mas para ganhar um brinquedinho. Passou a ser legítimo para mim corromper meu filho com um brinquedo mais caro, se uma empresa podia fazer isso também. Foi a primeira forma de trazê-lo para um universo mais palatável e de reflexão.

E os gêmeos?

Os gêmeos são menos contaminados pela indústria do fast food e mais pelo sushi. Comem alga e peixe cru, mas não querem salada ou moela. Com eles fiz o contrário. Plantamos juntos e esperamos a cenoura crescer, tenho uma galinha em casa que põe três, quatro ovos por semana. Essa relação de estar perto do ingrediente melhorou muito a situação. Se trazemos a comida para perto, criamos jovens mais próximos do ato de comer. Um dos grandes problemas é o distanciamento do ingrediente em seu primeiro momento, que é a vida. É confortável pegar carne na bandejinha. Se tivesse boi, porco, galinha mortos no supermercado, acharíamos feio e constrangedor. Mas passamos pela peixaria e achamos bonito porque os animais de sangue quente mudam de expressão quando morrem e os peixes continuam lindos depois de mortos. Acredito que deveríamos nos aproximar do ingrediente para acabar com aquela coisa de pedir coxa e peito de frango, de achar pé e pescoço nojentos. Nossas avós matavam frango e usavam 100% dele. O respeito àquela morte é fundamental, usar a totalidade do ingrediente. Hoje, entre a produção e o mercado, um terço do alimento produzido é jogado fora. O homem precisa se aproximar do alimento para entender o seu melhor aproveitamento. A maneira como produzimos e cozinhamos hoje não mata animais, mas esteriliza ecossistemas. Temos milhares e milhares de hectares de desertos verdes de soja plantada. A cozinha é o maior elo entre natureza e cultura. Todas as ciências humanas usam a cozinha – se ela é interdisciplinar, precisamos de outras disciplinas para nos ajudar. Não dá para esperar de um cozinheiro tudo isso. O saber não está completo e a cozinha brasileira precisa de diálogo.

Que ingredientes mais têm interessado você recentemente?

Venho usando algas há um tempo. Temos sete mil quilômetros de costa, uma má legislação de pesca, uma sobrepesca clara, o anseio por consumir mais peixe e não só pela moda do sushi, mas também pela busca de uma alimentação melhor. O mar não é uma fonte de recursos inesgotáveis, mas as possibilidades são. As algas são um mundo sensacional. Tenho feito pequenos projetos com elas – uma em especial, a Codium, tenho usado muito no D.O.M. Infelizmente, seu crescimento é lento e não sabemos como conseguiremos trabalhar com ela. Ela existe de norte a sul e, crua, é agradável de comer, com sabor muito especial. Também estamos estudando ervas marinhas, entre elas a salicórnia, encontrada no Brasil todo.

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