Não que esse tipo de vasilhame não seja usado mais nos grotões de Minas e do Brasil. Onde se produz a branquinha, muitos ainda usam esses recipientes, mas a sofisticação do mercado da cachaça é visível. Do uso de barris de carvalho importados à mistura de pedriscos de ouro comestível, produtores cada vez mais refinados dão requinte a um produto antes tido como de pouco valor.
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Nas cachaçarias Vale Verde e Pendão, antes de ser comercializado, o líquido permanece no barril por até 12 anos. Quanto mais tempo em contato com a madeira, mais a bebida perde a acidez, o que torna possível sentir outros aromas.
No caso da Pendão – um dos 40 rótulos apresentados na última edição do Festival Cachaça Gourmet –, a garrafa Black Diamond (12 anos), assinada pelo master blender Armando del Bianco, tem presença encorpada de madeira, frutas, creme e baunilha. “Não fica devendo ao uísque”, compara o gerente administrativo da marca, José Albuquerque.
Tamanha preocupação no processo de produção garante às duas marcas o status extra premium, segundo classificação feita pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), segundo o qual para obter esse rótulo a bebida precisa ser envelhecida por pelo menos três anos em recipiente de madeira apropriado com capacidade máxima de 700 litros.
Mas não basta pensar em garrafas com desenho diferenciado e em deixar a bebida envelhecer por anos. Prova disso é o sucesso das cachaças Havana e Anísio Santiago. Fabricadas em Salinas, as duas se beneficiam das características da região, como solo e clima, para o plantio da cana-de-açúcar, e apesar de comercializadas em garrafas mais simples, podem custar até R$ 1 mil.
Tanto é que os herdeiros de Anísio Santiago, falecido produtor criador das duas marcas, usam as garrafas para pagar funcionários e fornecedores.
Outro exemplo do refinamento da cachaça é a criação do estudante de engenharia Rafael Mendes. Ao se deparar com bebidas que continham flocos de ouro comestíveis, ele decidiu repetir e fez os estudos necessários para que a mistura fosse aprovada. Deu certo.
Hoje ele produz as garrafas de cachaça com mel e limão e pedrinhas de ouro 23 quilates (96% de ouro e 4% de prata), que, apesar de não terem gosto, dão maior status à bebida para o consumidor. Mas a mistura confere ao produto o título de bebida mista de cachaça, de acordo com regimento do Ministério da Agricultura.
Boas práticas
Com o maior status conquistado ao longo dos últimos anos, a produção de cachaça se torna cada vez mais um negócio, com o mercado brasileiro registrando crescimento constante. Para garantir e melhorar a qualidade da bebida, o Ministério da Agricultura, em parceria com o Sebrae e os produtores, vai publicar um manual de boas práticas da cachaça. Essa é uma das medidas para melhorar a qualidade da bebida em todo o país e garantir que o caminho trilhado até aqui para tornar a cachaça um produto gourmet seja ampliado.
Hoje, o setor emprega 120 mil pessoas direta e indiretamente para a produção de 900 milhões de cachaça por ano, com a maior parte destinada ao mercado doméstico, segundo dados do Ministério da Agricultura. Em Minas, a produção anual de cachaça de alambique é superior a 200 milhões de litros. Para alavancar a produção de cachaça no país, o governo criou a Câmara Setorial da Cadeia Produtiva da Cachaça.
A oportunidade perfeita para elevar um tradicional produto mineiro ao mais alto posto da culinária. Extrapolando os limites tradicionais dos bares, onde foi consagrada por apreciadores dos mais diversos perfis, aos poucos a cachaça conquista um espaço cada vez mais nobre. Criado há cinco anos o Festival Cachaça Gourmet contribui para derrubar tabus e coloca a mais genuína bebida brasileira no patamar de produtos sofisticados. A edição deste ano foi encerrada no último fim de semana.
Pelas regras do festival, bares e restaurantes são convidados a criar pratos e tira-gostos tendo a cachaça como um dos ingredientes. Vale usá-la para flambar a carne, seja de porco, boi, frango e até bacalhau, ou na elaboração de molhos. Tudo depende da criatividade e originalidade de quem elabora o prato.
“Bem mais que um aperitivo ou bebida de boteco, a intenção é mostrar que a cachaça pode ser apresentada de forma mais requintada e com destaque também na gastronomia”, explica a gastrônoma e curadora do festival Cachaça Gourmet, Rosilene Campolina.
Por um mês, os visitantes podem apreciar as mais variadas combinações e, claro, eleger aquele com sabor mais agradável. Um júri técnico também escolhe o melhor, de acordo com apresentação; criatividade e originalidade; e sabor e harmonização.
A abertura de portas não para por aí. Conhecida internacionalmente por ser o principal ingrediente da caipirinha, no festival convidados são chamados a criar drinques que também têm a cachaça como matéria-prima. E eles ousam. Há quem misture a bebida com licor, leite de coco, caju e até mesmo café, formando uma parceria inusitada entre duas das tradicionais iguarias da cozinha mineira.