Um dos nomes mais importantes da fotografia brasileira, Luis Humberto Miranda Martins Pereira morreu na madrugada de ontem, em Brasília, aos 86 anos. Ele estava internado desde dezembro, em decorrência de complicações geradas por um linfoma no sistema nervoso central.
Carioca, formado em arquitetura e funcionário do Ministério da Educação, Luis Humberto chegou a Brasília em 1961, com a então mulher, Eloá, que foi transferida da Câmara dos Deputados no Rio de Janeiro, em razão da inauguração da nova capital.
Ele foi trabalhar nos projetos de construção do campus da Universidade de Brasília (UnB). Entre a arquitetura e o cerrado do Planalto Central, Luis Humberto encontrou a fotografia.
Foi registrando a flora local que ele começou a desenvolver com a câmera uma intimidade que o levaria para o registro da arquitetura e da política. “Fotografia, para mim, é um negócio glorioso, porque eu me encontrei. Aquele negócio de `você deixou a arquitetura…’ não é assim. Encontrei foi uma paixão maior. A fotografia combina mais comigo do que a arquitetura. Arquitetura, o cara entra, te pede um projeto, você vai conversar com ele para saber o que ele quer, aí você faz uma coisa, ele acha ruim sempre, e isso não acaba até construir a casa. Todos os empecilhos tirados, são mais de dois anos. Não tenho dois anos para perder com uma casa”, disse, em entrevista em 2017, ao Correio Braziliense.
O olhar crítico para as entranhas do poder e da opressão materializava-se em fotografias carregadas de ironia: poucos fotógrafos conseguiam roubar dos militares e seus palácios os enquadramentos sugestivos de Luis Humberto. Sem flash, sempre com duas câmeras penduradas no pescoço, o fotógrafo produziu um dos maiores arquivos sobre o teatro do poder durante a ditadura.
Nos anos 1980, Luis Humberto deixaria para trás as redações para retornar ao posto de professor, na Universidade de Brasília (UnB), onde repetia aos alunos a lição: “Não podemos nos contentar em ser previsíveis”. Na Faculdade de Comunicação, como professor, formou várias gerações e tornou-se referência no ensino da fotografia.
Para o fotógrafo Rinaldo Morelli, que foi aluno de Luis Humberto, a definição adequada é de “mestre”. “Luis Humberto é o filósofo das práticas e respectivas reflexões. Os processos de descobertas, partindo do universo particular de cada um, sempre foi sua maior aposta, seja para seu olhar pessoal seja para instigar outros olhares”, diz Morelli.
O cineasta Vladimir Carvalho, também professor da UnB e amigo do fotógrafo, diz que ele pavimentou a cena fotográfica da cidade. "Luis praticamente fundou o movimento da fotografia na capital. Primeiro, como professor, e depois como militante da fotografia na imprensa. Ele tem um apuro tal, com relação às artes fotográficas, que é uma referência quando se trata de fotografia artística. Ele era uma espécie de líder de todos os companheiros que estavam no batente, especialmente na época da ditadura militar, ele cobria o Congresso”, conta Carvalho.
Uma parte de sua obra está nos livros Fotografia: Universos & arrabaldes (1983) e Brasília, sonho do Império, capital da República (1981). Em 2007, ele publicou ainda Do lado de dentro de minha porta, do lado de fora de minha janela.
Na obra de 1983, ele faz uma aguda e certeira análise sobre as consequências do avanço tecnológico para o futuro da fotografia. “À ideia de que a vulgarização das câmeras estenderá a tantas pessoas a possibilidade de tirar boas fotos que será possível praticamente a qualquer um tornar-se fotógrafo de boa qualidade, vale lembrar: se todas as pessoas do mundo fossem alfabetizadas de uma hora para outra, isso não as tornaria poetas ou escritores de alta qualidade, mas iria lhes permitir um acesso a novas formas de expressão, abrindo oportunidade para o aparecimento de propostas verdadeiramente inovadoras”, escreveu.
Nos últimos anos, Luis Humberto se dedicou a ensaios domésticos. Dada a dificuldade de mobilidade por causa do Parkinson, ele passou a registrar o ambiente ao redor a partir da perspectiva da cadeira de rodas. “Comecei a fotografar, a olhar as coisas de outra maneira, descobrir coisas, trabalhar num universo de dimensões menores, o que não desqualifica, mas faz você mergulhar em outra escala de coisas. Você vai descobrindo coisas que têm um certo encanto, é um jogo”, afirmou, ao falar sobre o ensaio A reforma do (possível) do olhar.
A Rede de Produtores Culturais da Fotografia no Brasil divulgou nota, lamentando a morte do fotógrafo.
O texto afirma que "o fotógrafo e pensador Luis Humberto desenvolveu uma fotografia poética-política que brilhantemente driblou a censura e explicitou sua forma de enxergar e denunciar o poder despótico, poder ditatorial, a grande marca de seu trabalho na imprensa".
Diz ainda que, "sempre cercado de jovens, motivava com seu espírito aberto, lúcido e entusiasmado".
Em decorrência da pandemia do novo coronavírus, o velório será restrito a familiares. (Colaborou Ricardo Daehn)
Confira declarações de Luis Humberto ao jornalista Carlos Marcelo, publicadas em reportagem especial sobre seus 80 anos, em 2014
‘‘A decisão de apreender um retalho do real, transformando um momento de banalidade em imagens de surpreendente significação, ocorre em uma esfera de decisão extremamente íntima e pessoal. É um processo íntegro e indivisível’’
‘‘O fenômeno comumente chamado de inspiração não é resultante da captação de misteriosos fluidos que nos incendeiam subitamente, mas de um momento de convergência da depuração e da síntese de todo um esforço orientado na busca de respostas, finalmente alcançadas com clareza’’
‘‘Existe algo de visceral, de fascínio, de encanto hipnótico, de aceitação de um desafio a que nos propomos contra nossos próprios limites. Alguma coisa de prazer físico em nos sentirmos vivos e metidos até o pescoço em um jogo cujos triunfos sabemos fictícios e transitórios”
‘‘A fotografia pode não ser confiável como constatação de uma verdade ou mesmo pode não conter um indicativo seguro da ideologia de seu autor, mas será certamente um resultado decorrente de seu relacionamento com o mundo à sua volta e, portanto, passível de se transformar em testemunho importante, talvez mesmo denunciador, das angústias e aspirações de seu tempo”
‘‘O Brasil é um país adiado, sempre adiado. Quando Pedro Álvares Cabral chegou, disse assim: ‘Olha o país que vamos descobrir e adiar.’ É um negócio incompreensível com a riqueza territorial e as belezas que temos”