Feminista, Vanusa gravou grandes da MPB. Conheça carreira da cantora

Morta aos 73 anos, ela se apresentou em BH pela última vez em 2013. Na ocasião, conheceu Vander Lee, que acabara de gravar em álbum com Zeca Baleiro

Mariana Peixoto 08/11/2020 15:12
Dea Tomich/Divulgação
Vanusa em outubro de 2013, em show na Funarte (foto: Dea Tomich/Divulgação)
Ao final de um dos dois shows que fez na Funarte, nos primeiros dias de outubro de 2013, Vanusa recebeu no camarim o cantor e compositor Vander Lee (1966-2016). Ao conhecê-lo, se disse muito impactada com a canção Esperando aviões. Gostava tanto que a havia gravado em um disco na época inédito. Esta foi a última vez que a cantora, morta hoje aos 73 anos, se apresentou em Belo Horizonte.
 
A morte de Vanusa, de insuficiência respiratória, em uma casa de repouso em Santos, litoral de São Paulo, ocorreu um mês e um dia após ela ter tido alta do Complexo Hospitalar dos Estivadores, na mesma cidade. A cantora ficou internada durante 32 dias em decorrência de pneumonia e anemia. Chegou a ser transferida para a Unidade de Terapia Intensiva.
 
A saúde fragilizada já vinha de mais de uma década, a partir de um tristemente explorado acontecimento. Em 2009, em uma solenidade na Assembleia Legislativa de São Paulo, Vanusa fez uma atrapalhada interpretação do Hino Nacional. Virou piada nas redes sociais – diziam que estava bêbada ou drogada – e se enterrou em casa. 
 
Alegou na época que estava sob efeito de um forte remédio para labirintite. Pouco depois, em Manaus, cometeu erros grosseiros na interpretação. Vídeos voltaram a viralizar na internet. A depressão e levou ao vício em antidepressivos que acarretaram uma internação. Mais recentemente, o diagnóstico de Alzheimer a colocou na casa de repouso onde viveu seus dois últimos anos.
 
A despeito disto, Vanusa teve um último grande momento, justamente na época do show em Belo Horizonte. Ela participou do projeto Salve Rainhas, projeto que elencou 20 cantoras, todas com mais de 30 anos de carreira. Cada uma se apresentava no formato de um talk show, concebido pelo produtor Pedrinho Alves Madeira, que passeava pela trajetória de cada intérprete. 
 
Vanusa cantou ao lado de Sérgio Sá (1953-2017), cantor e compositor cearense que foi seu parceiro por muitos anos. Com o primeiro marido da cantora, Antonio Marcos (1945-1992), Sá compôs Sonhos de um palhaço, sucesso na voz dela. Vanusa e Sá criaram Mudanças (1979) um hit de cunho feminista – “Porque sou mulher/Com todas as incoerências/Que fazem de nós/Um forte sexo fraco” – que foi utilizada no comercial de uma transportadora de móveis mineira (“Hoje eu vou mudar” era o gancho da propaganda que fez sucesso nos anos 1980).
 
Pouco depois do show na Funarte foi lançado Vanusa Santos Flores (2015), que acabou sendo seu derradeiro álbum. Produzido por Zeca Baleiro e lançado pelo selo do maranhense, Saravá Discos, o trabalho com dez canções trazia Esperando aviões.
 
Marcos Pacheco/Divulgação
Vanusa com Zeca Baleiro, que produziu último disco (foto: Marcos Pacheco/Divulgação)
Ao Estado de Minas Vanusa disse, ainda em 2013, como tinha sido seu retorno a um estúdio depois de 15 anos.  ”Quando fui internada na clínica de reabilitação, Zeca entrou em contato com minha filha, Aretha, me procurou e me disse: ‘Quando você sair daqui, tiver legal e quiser cantar de novo, vamos gravar um disco’. E estamos aí finalizando o CD, com o nome que ele sugeriu, que é meu nome completo. É a minha cara, a minha identidade e reflete o meu momento, o meu sentimento.”
 
No trabalho, ela também gravou Ângela Ro Ro (Compasso), Zé Ramalho (O silêncio dos inocentes) e uma parceria com o próprio Baleiro (Tudo aurora). “Certo dia convidei a Vanusa pra ir no meu estúdio e lá falamos sobre a possibilidade de fazermos um CD novo. Ela ficou muito feliz. Ela é uma cantora muito importante na história recente da nossa música popular, e depois daquele episódio do Hino, precisava da volta por cima. Levamos dois anos trabalhando na feitura do CD. Ela era uma pessoa doce e foi uma grande aula trabalhar com ela”, publicou, nas redes sociais, Zeca Baleiro.
 
“Tenho uma trajetória tão bonita e as pessoas ficam lembrando só disso (do caso do Hino Nacional)”, Vanusa também afirmou ao EM. Tal fala, sete anos atrás, pode valer para outras passagens da trajetória da cantora, em que público e privado se misturaram em diferentes ocasiões.
 
Nascida em Cruzeiro, interior de São Paulo, Vanusa mudou-se com quatro anos para Uberaba, e de lá para Frutal, ambas no Triângulo Mineiro. Foi em Minas que ela, aos 16 anos, estreou como vocalista do grupo Golden Lions. Um empresário a viu e a levou para São Paulo. 
 
As aparições na televisão foram uma constante até a década de 1980. Participou de atrações da extinta TV Excelsior, como Os Adoráveis Trapalhões, programa liderado por Renato Aragão e Dedé Santana. Em 1968, gravou o primeiro álbum, chamado Vanusa (seu nome deu título a vários discos ao longo da carreira), com o sucesso Pra nunca mais chorar, de Carlos Imperial e Eduardo Araújo.
 
Este trabalho de estreia tem algo incomum para a época: uma intérprete feminina que também dá voz às próprias composições. Das 12 faixas, quatro são assinadas por Vanusa. Uma delas, o blues Negro, merece atenção por estar antenada à luta antirracista impulsionada por Martin Luther King, assassinado justamente no ano em que o disco saiu.
 
Considerado o trabalho psicodélico de Vanusa, por conta da capa e sonoridade, Vanusa (1969) é exemplar da ousadia da cantora, que mostra a extensão da voz em uma versão explosiva do clássico Sunny, de Bobby Hebb. No mesmo período, conhece o cantor Antonio Marcos e se casa com ele em 1972. O romance - e as atribulações em decorrência do abuso de álcool que o acabou matando, em 1992 - do casal ocuparam espaço relevante na imprensa de celebridades do momento. 
 
A união, que gerou as filhas Amanda e Aretha, foi bastante explorada na TV. Eram frequentes as aparições de Vanusa, entre os anos 1970 e 1980 em programas populares, como o de Silvio Santos
 
Gal Oppido/Divulgação
Em 2015, quando lançou o disco Vanusa Santos Flores (foto: Gal Oppido/Divulgação)
Na década de 1970 Vanusa dá início ao período de maior sucesso popular com a música Manhãs de setembro, dela e de Mário Campanha. O produtor Wilson Miranda não acreditava no sucesso comercial da faixa e queria deixá-la de fora do repertório do disco que a cantora estava gravando em 1973. 
 
Vanusa fez pressão, venceu a batalha e a balada desencantada e ao mesmo tempo esperançosa foi para o topo das paradas de sucesso. O álbum também conta com What to do, comparada nos últimos anos a Sabbath Bloody Sabbath, clássico da banda de heavy metal Black Sabbath - a de Vanusa saiu meses antes.
 
A carreira de Vanusa estava no auge quando ela decidiu se separar de Antonio Marcos, em 1975. "Chegou a hora de você escolher: ou a nossa vida ou o seu scotch", disse ela depois de ouvir uma das duas filhas do casal dizendo que não queria ir para a escola porque os colegas diziam que o pai dela era bêbado. "Nunca vou parar de beber", respondeu Marcos. 
 
A frase entristeceu profundamente a cantora, que naquele momento tentava fazer uma transição para a elite da MPB com Amigos novos e antigos (1975), seu melhor disco, com faixa-título composta por João Bosco e Aldir Blanc, além de inéditas de Belchior (Paralelas, em versão antológica), Luiz Melodia (Congênito) e Fagner (Coração americano, com Marcos).
 
No álbum seguinte, Vanusa 30 Anos, ela voltou a se aproximar de grandes compositores, que lhe deram material em primeira mão. Caetano Veloso fez Duas manhãs, mas as faixas de maior repercussão foram Estado de fotografia, que fez parte da trilha sonora da novela O Astro (1977) e Avôhai, de um ainda iniciante Zé Ramalho. O disco foi produzido por Augusto César Vannucci, diretor da TV Globo, o segundo marido da cantora. Os dois são pais de Rafael Vannucci.
 
Com a carreira em declínio a partir dos anos 1990, Vanusa, com o trabalho com Zeca Baleiro, fez um bom álbum-testamento. A morte (infelizmente) deve trazer novas luzes ao trabalho da cantora. (com Estadão Conteúdo)

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