"Estamos fritos, rapazes! Se a gente não se apressar em mudar o mundo, depois é o mundo que muda a gente”, afirmou certa vez Mafalda. O mundo mudou – para pior, em vários aspectos, não há como negar – desde que a garota questionadora, indignada e sarcástica (e que odeia sopa) aportou nele, em 1964. Mafalda não mudou, mas certamente está mais triste desde quarta-feira com a morte de seu criador, o cartunista argentino Joaquín Salvador Lavado Tejón, o Quino, aos 88 anos.
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Seus cartuns viajaram para muito além da Argentina. Foram traduzidos para mais de 35 idiomas. Diz-se que, a cada dois argentinos, um tem um livro de Quino. Recebeu inúmeros prêmios, entre eles a Legião de Honra da França e o Príncipe das Astúrias.
PRÊMIO
“A história em quadrinhos pode ser uma arte menor, mas também como meio de comunicação é bastante apropriada para divulgar maciçamente humor ou ideias, que não precisam ser humorísticas. Ainda há quem nos pergunte: ‘No que você trabalha, além daqueles cartuns?’. Tem gente que não faz isso por trabalho”, afirmou Quino, em 2014, ao se tornar o primeiro cartunista a receber o prêmio espanhol.
Filho de imigrantes andaluzes, ele nasceu em Mendoza, em 17 de julho de 1932, embora os registros oficiais indiquem a data de 17 de agosto. Desde seu nascimento, foi chamado de Quino para distingui-lo de seu tio Joaquín Tejón, pintor e designer gráfico.
Aos 6 anos, Quino decidiu que se dedicaria aos quadrinhos. E quando percebeu que para isso precisaria saber ler e escrever, teve que suportar a escola: não gostava de aula e era tímido demais para fazer amigos.
Aos 9, fez um acordo com a mãe: ela concordou em deixá-lo desenhar na mesa de madeira da cozinha se ele a limpasse toda vez que terminasse. Três anos mais tarde, perdeu a mãe, vítima de câncer. Passados outros três anos, seu pai sofreu um ataque cardíaco fulminante.
A casa da família, organizada em torno do rádio, em que se ouviam notícias da Guerra Civil espanhola e da avó, que contava histórias comunistas, foi dissolvida. Quino voltou a ficar aos cuidados do tio. Foi quando desenhou os quadrinhos que levou para Buenos Aires na primeira vez em que tentou a sorte na capital argentina, aos 19 anos.
Nem jornais, revistas ou agências de publicidade se interessaram. Ele voltou para Mendoza. Mas não desistiu. Incentivado por parentes, rumou mais uma vez para Buenos Aires, onde passou a viver em quartos coletivos de pensões.
Sua carreira começa a decolar entre o fim dos anos 1950 e o início dos anos 1960. Em 1962, uma agência de publicidade lhe encomendou um cartum para lançar uma linha de eletrodomésticos da marca Mansfield.
Havia duas condições: o nome da personagem da tira tinha que começar com Ma, como a marca, e o contexto deveria ser o de uma família de classe média. Quino se lembrou de um filme a que havia assistido, Dar la cara (1962, dirigido por José A. Martínez Suárez), que tinha um bebê, Mafalda, como um dos personagens.
A campanha nunca foi lançada, mas, em 1964, quando lhe perguntaram se não tinha desenhos para publicar no semanário Primera Plana, sua mulher, Alicia Colombo (os dois se casaram em 1960, não tiveram filhos e ficaram juntos até a morte dela, em 2017), foi quem tirou Mafalda da gaveta. A garota gordinha de 8 anos, com cabelo espesso, estreou em 29 de setembro de 1964, um ano após Quino ter publicado seu primeiro livro, Mundo Quino.
Mafalda existiu por quase 10 anos – estrelou 1.928 tiras. Com humor sutil, carregada de crítica social, as tirinhas da garota e dos amigos Susanita, Miguelito, Manolito, Felipe e Libertad foram os únicos personagens permanentes que ele desenhou.
FIM
Em 25 de junho de 1973, Quino publicou sua última tira com a personagem. Justificou o fim dela com o medo de se repetir. "Mafalda saiu bem porque a época em que a criei era boa, embora houvesse conflitos como sempre. O ser humano é barraqueiro por natureza", explicou ele.
Mas a personagem se eternizou e continuou influenciando novas ge- rações. O retrato de Mafalda está pendurado na Galeria dos Ídolos Populares da Casa Rosada, a sede do governo argentino, junto com lendas como o ex-jogador de futebol Diego Maradona, o cantor de rock Charly García, o bailarino clássico Julio Bocca, o automobilista Juan Manuel Fangio e o cantor de tango Carlos Gardel.
Embora nunca tenha negado a fama mundial que Mafalda lhe trouxe, Quino sempre a considerou mais um personagem. "Nunca a amei mais do que meus outros desenhos", disse. Ele avaliava que a paixão que a garota despertava em milhões de pessoas foi também a maior razão pela qual suas outras obras não receberam tanta atenção.
Em 2009, escreveu a carta “Até mais tarde, amigos”: despediu-se do medo de se repetir, como acontecera com Mafalda. Naquele momento, já tinha problemas de visão e de locomoção. “Considero essa atitude a mais honesta que posso assumir neste momento”, escreveu. Além dos livros de Mafalda, havia publicado quase duas dezenas de obras.
A marca, independentemente da personagem, se manteve. Sempre reivindicou a liberdade, muitas vezes ironizou a exploração do trabalho e também fez humor com a psicanálise. Lacônico, por vezes melancólico e em muitas outras brilhante, Quino levava nas paredes de seu estúdio uma reprodução de Guernica, que lhe lembrava sempre o Picasso que gostaria de ter sido – não fosse o artista que era, claro.
Também na parede, outra imagem que dizia muito sobre ele: "Por motivos de timidez, relatos de qualquer espécie não são aceitos". Não era brincadeira: "Desenho porque falo mal", confessou certa vez.
O que Quino disse
“Eu queria ser Picasso, mas chegou um momento em que percebi que não poderia ser Picasso.”
“Fiquei muito frustrado porque a única vez em que pude trocar algumas palavras com (Jorge Luis) Borges ele falava da língua espanhola. Eu disse a ele: 'Desculpe, sou filho de imigrantes andaluzes.' E ele me disse: ‘Ah, você sabe que a palavra andaluz vem dos vândalos...’”
“Não era minha intenção que a Mafalda durasse tanto. Eu esperava que o mundo melhorasse, mas a política liberal está tornando os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres."
O que Mafalda disse
“Quero dar os parabéns aos países que lideram a política mundial. Espero que sempre haja motivos."
“Gosto das pessoas que pensam o que dizem, mas, acima de tudo, gosto das pessoas que fazem o que dizem.”
“Já que há mundos mais evoluídos, por que eu tive que nascer justo neste?”
“Boa-noite, mundo! Boa noite e até amanhã, mas fique de olho! Tem muita gente irresponsável acordada, viu?”
O que falaram sobre Mafalda
“Não importa o que eu penso da Mafalda. O importante é o que a Mafalda pensa de mim.”
(Julio Cortázar)
“Ela não ama nem respeita, pelo contrário: ridiculariza e repudia, reivindica o direito de continuar a ser uma menina que não quer incorporar o universo adulto.”
(Umberto Eco)
“Mafalda tocou em temas profundos da alma humana.”
(Ernesto Sábato)
Mauricio de Sousa se despede do 'irmão'
O desenhista brasileiro Mauricio de Sousa escreveu sobre a perda do amigo Quino e lembrou que o argentino criou a Mafalda no mesmo ano em que ele criou a Mônica.
"O amigo Quino está agora desenhando pelo universo com aqueles traços lindos e com um humor certeiro como sempre fez. Criou sua Mafalda, hoje de todos nós, no mesmo ano em que eu criei a Mônica, em 1963. Por isso, nos tornamos irmãos latino-americanos para desbravar o mundo dos quadrinhos. Estive com ele em 2015, em Buenos Aires, no Centro Cultural Brasil-Argentina, onde o presenteei com uma Mônica ao lado da Mafalda na comemoração dos 50 anos das duas personagens. Uma pessoa dócil e um dos maiores desenhistas de humor de todos os tempos. Quino vive agora mais forte dentro de nós."