Após quase seis meses em casa, artistas contam o que aprenderam na pandemia

As lições vão de fazer um bom feijão e lidar com cupins a se dar mais valor e ser menos exigente com os outros

Redação EM Cultura 30/08/2020 04:00
A quarentena como medida de precaução ao contágio do novo coronavírus já se arrasta por quase seis meses. O Estado de Minas perguntou a artistas de distintas áreas o que eles aprenderam neste tempo de pausa forçada em casa. Fazer um bom feijão, lidar com cupins e infiltrações estão entre as lições assimiladas. E também aprender piano, se dar mais valor, exigir menos de si e dos outros, conseguir se equivaler a uma multidão, mesmo sendo a única companhia da parceira. Confira as respostas a seguir 

Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press
(foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)


>> Ignácio de Loyola Brandão, escritor, jornalista e membro da Academia Brasileira de Letras

“Descobri que minha mulher fica muito feliz quando fico na cozinha junto, conversando, preparando bebidas, contando coisas. Antigamente, ela ia para a cozinha e eu para a TV. Alguns livros tive de comprar em duplicata, porque eu começava a ler, ia contando trechos, ela se interessava e apanhava o livro e eu ficava constrangido de tirar dela. No final da COVID vamos doar muita coisa. Assim foi com A louca da casa, da Rosa Montero, com O grande Gatsby (releituras), e uma biografia do Van Gogh. Márcia, minha mulher, é arquiteta. Trouxe seu computador e se instalou em uma mesa diante de mim. Enquanto escrevo, às vezes, falo sozinho. No começo, ela indagava: ‘O que é?’ Eu: ‘Estou falando com os personagens’. Aí, descobri que ela faz o mesmo, fala com os projetos. De maneira que às vezes estamos falando, mas não é com o outro. E rimos. Tem dia que ela demora um pouco, chego antes. Ela vem e cumprimenta: ‘Bom dia a todos’. Todos sou eu. Pergunto: ‘Muito trânsito hoje’?. O escritório é a alguns metros de nosso quarto. Tentei arrumar a biblioteca. Fui, fui, fui. A descoberta mais importante, dentro dos livros, foi de alguns boletos da Mega Sena jamais conferidos. Tinha alguns de 1998. Fico pensando: será que fui milionário e perdi a chance?.”
 
Marcos Hermes/Divulgação
(foto: Marcos Hermes/Divulgação)

 
>> Fabiana Cozzacantora 
 
“Aprender a viver o hoje é, sem dúvida, o meu maior desafio. Pensar na vida que existe agora, semeando um futuro ainda nebuloso, sobretudo para nós, artistas. Nesse sentido, estudar piano tem me ajudado e me organizado internamente, já que é um desafio imenso e uma viagem de uma beleza única.”
 
Élcio Paraíso/Divulgação
(foto: Élcio Paraíso/Divulgação)

 
>> Chico Lobovioleiro

“A gente teve que se reinventar como artista e como pessoa. Primeiro, porque ficamos privados do nosso ganha-pão, que são os shows e a estrada. A minha vida era 70%, 80% fora de casa, nas viagens, nos shows, que eram o centro da nossa renda. Aprendi e desenvolvi essa capacidade técnica de fazer uma live, isso foi um ponto. Outro ponto que foi fundamental também foi aprender a como produzir um álbum a distância. Depois de 25 CDs lançados, é a primeira vez que uso essa estratégia. Nós estamos lançando vários singles nas plataformas digitais. Em novembro, depois de toda essa agitação e espaço nas plataformas digitais, será lançado o disco físico. Isso é a primeira vez que eu faço. Foi um enorme aprendizado para mim, de como explorar a potencialidade que as plataformas digitais dão para a nossa música. E aí, o aprendizado pessoal, que foi me reinventar como pai, marido, dono de casa. Eu sou o responsável por fazer os almoços e jantares aqui de casa. Então, comecei a inventar pratos para trazer novidades. Um simples pão de forma que, no ínicio, era fundamental para não precisar sair todo dia pra ir na padaria, eu inventei várias formas de fazer para customizar e ser sempre uma novidade."
 
Rafael Freire/Divulgação
(foto: Rafael Freire/Divulgação)

 
>> Rafael Freirefotógrafo, autor da página no Instagram Favela a Flor que se Aglomera (@aflorfavela)

“A pandemia me ajudou a olhar mais para o meu trabalho e lhe dar mais valor. Descobri que sou bom naquilo que faço. Aprendi a ser mais criativo. Aprendi muito a ser um bom empresário acessando a internet, assistindo a conteúdos no YouTube e lendo alguns livros. Aprendi a olhar o trabalho do próximo, a enxergar melhor dentro de mim e ver meu potencial. Eu não sabia que era capaz de fazer tantas coisas bacanas. Até aumentei as vendas do meu trabalho, à medida que fui estudando o mercado na quarentena, como estava com mais tempo disponível. Percebi que meu trabalho realmente vale a pena. Acabei aumentando o preço do meu serviço, sendo mais justo comigo mesmo. Comecei a me importar mais com meu trabalho . Parece que as pessoas enxergaram isso e começaram a dar valor também.
Também aprendi a dar valor ao abraço, ao carinho e às pessoas. Aprendi a economizar e a olhar a natureza com outro olhar."
 
Vito Soares/Divulgação
(foto: Vito Soares/Divulgação)

 
>> Pedro Calaismúsico, vocalista da banda Lagum

“Comecei a jogar videogame em casa. Nunca antes tinha me dedicado a aprender a jogar esse tipo de coisa. Sempre via meu irmão e colegas jogando, mas agora a gente comprou um e estou jogando com mais frequência. É legal que você joga com pessoas que você nunca vai ver na vida. Gente mais nova, mais velha, de realidades totalmente diferentes. 
Estou jogando agora um chamado Fall Guys. Ele é bem bobo, mas muito divertido. São vários bonequinhos que ficam jogando, correndo e vencendo provas. Até parece as Olimpíadas do Faustão. E é bom que não levo muito a sério, porque a vida já é séria pra caramba. Meu limite até agora são duas horas, depois já quero fazer outra coisa. 
Eu também estou mudando de casa, nunca tinha feito isso sozinho. Tô aprendendo a lidar com cupim e infiltrações, não fazia ideia de como era isso. Estou indo morar sozinho agora. Eu também estou cozinhado mais… Minha mãe está me desmentindo aqui. Mas, na casa da minha namorada, eu cozinho e lavo a louça inteira.” 
 
Fafá Rennó/Divulgação
(foto: Fafá Rennó/Divulgação)

 
>> Fafá Rennóatriz 

“Eu aprendi a fazer feijão! Sério, eu não sabia. E tem umas três semanas só que eu fiz e ele ficou maravilhoso. Eu estou diminuindo (o consumo da) carne, então resolvi encarar uma panela de pressão e fazer feijão. Eu já cozinhava antes, mas não com tanta frequência como agora.  
Eu também me arrisquei no macarrão e bombei no carbonara. Então não sei se vou tentar fazer de novo, tenho que descobrir o que fiz de errado. Eu invento muita coisa na cozinha. 
Eu já fazia faxina e já lavava banheiro há muito tempo. Não tenho uma ajudante nem nada disso. Só uma vez por mês que eu chamava alguém, mas isso acabou. Quem está fazendo a faxina maior e menor sou eu. Mas ainda não me arrisco com furadeira. O que tirei mesmo dessa quarenta é um bom feijão. A minha independência do feijão próprio.”
 
Rafael Sandim/Divulgação
(foto: Rafael Sandim/Divulgação)

 
>> Julia Brancoatriz, cantora e compositora 

“Não vou nem dizer que tenho mais tempo, pois parece que a tecnologia nos fez ficar ainda mais ocupados do que antes. Mas o fato de poder estar em casa, não pegar trânsito, não ter o deslocamento, me faz ter um tempo que passa diferente no meu corpo e isso para mim está sendo potencialmente criativo. Tenho tentado me aprimorar neste ano: estou estudando violão, voltando a estudar canto, cuidando do corpo, coisas que eu não tinha condições (ou achava que não tinha) de viver quando a vida estava ‘normal’. Essa nova experiência com o tempo está mexendo muito comigo e tenho certeza de que vai reverberar, de certa forma, no meu trabalho. E também acho que é uma experiência de ‘antes’ e ‘depois’. Não vamos voltar ao que éramos, na minha opinião. A minha sensação é que estamos numa grande transição planetária, uma transição de era, mesmo. Tenho tentado aprender com os tempos: o do passado, do presente e do futuro. Sem negligenciar nenhum e tentando respeitar e escutar todos.”
 
Pedro Veneroso/Divulgação
(foto: Pedro Veneroso/Divulgação)
 
>> Sara Não Tem Nomecantora, compositora, musicista, artista visual e performer
 
“O que aprendi, na prática, é que na vida a gente tem poucas certezas e tudo pode mudar de uma hora para outra. Essa visão que a gente tem de segurança e estabilidade é muito frágil. E eu sinto que a gente ainda não saiu dessa situação, então é difícil falar do que aprendi, porque eu ainda estou aprendendo muito. Mas, sem dúvida, é um momento de muita resiliência e de repensar o que a gente acha que sabe. É um momento de aprender a repensar, a se reposicionar. Também sinto que esse momento me trouxe mais humildade, mais paciência comigo, com as pessoas e com as situações da vida. Estou aprendendo a ter um pouco mais de tranquilidade com certas situações. Exijo menos um pouco de mim e dos outros. Essas situações-limite fazem com que a gente pense o que é realmente importante, o que fica da vida e o que vale a pena. Então, sinto que, para mim, tem sido uma aprendizagem nesse lugar de experiência de vida e de crescimento como ser humano.”
 
Inês Rabelo/Divulgação
(foto: Inês Rabelo/Divulgação)


>> Olavo Romanoescritor

“Navegando em nevoeiro,
Vou lhe mostrar, companheiro,
A paisagem que eu vi,
A lição que eu aprendi.

Vencer o medo da morte,
Ver a trilha percorrida,
Bendizer lances da sorte
Iluminando sua vida

Perceber o ‘não’, antigo,
Mostrando porta fechada;
Depois voltando, amigo,
Na janela escancarada.

Enxergar em cada dia
A chance do recomeço,
Pois o mesmo fuso fia
O direito e o avesso.

Refletindo nisso agora
Eu lhe digo o que acho
Que ensina esta lição:

O que está dentro está fora;
O de cima está embaixo,
Mas a porta só se abre
No fundo do coração.”

(Depoimentos recolhidos por Fernanda Gomes, Fred Gandra, Guilherme Augusto, Mariana Peixoto e Pedro Galvão) 

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