Um fodido privilegiado. O ator Matheus Nachtergaele pega emprestado o nome do grupo teatral que Antônio Abujamra (1932-2015) fundou na década de 1990 para falar de sua própria situação durante a pandemia do novo coronavírus.
“Apesar de a minha profissão estar paralisada, e o teatro deve ser a última atividade a voltar, tenho bons projetos em gestação, filmes finalizados e várias obras que foram nascendo durante a pandemia.”
Isso sem falar dos trabalhos que foram realizados antes do período de isolamento social e que vieram a público já na quarentena. Nachtergaele está no elenco da série Todas as mulheres do mundo (Globoplay), produção de Jorge Furtado baseada na obra homônima de Domingos de Oliveira, lançada em abril passado. Também está no longa-metragem Piedade, de Cláudio Assis, que teve pré-estreias on-line, em junho.
O ator ainda pode ser visto na reprise da primeira temporada da série Cine Holliúdy, que a Globo está exibindo, e na recém-estreada Rocky e Hudson – Os caubóis gays, série de animação de Otto Guerra e Erica Maradona baseada nos personagens de Adão Iturrusgarai, que chegou nesta semana ao Canal Brasil – Nachtergaele dubla o caubói Rocky.
Mais: vizinho do ator Bruno Mazzeo no Jardim Botânico, Zona Sul do Rio de Janeiro, ele fez uma participação afetiva na série Diário de um confinado, produzida e lançada por Mazzeo na pandemia.
Solidão
“Não separo a minha vida do trabalho. Sou realmente feliz quando se dá o terceiro sinal ou quando dizem ‘ação’. Este excesso de trabalhos já filmados não é uma característica de capricorniano que trabalha demais, eles são o que sou. E, na pandemia, reaprendi a estar sozinho, a lidar com as coisas simples das quais tinha me afastado, reler livros, fazer ligações longas com amigos queridos. Tenho muitos sentimentos tristes. Não sei se a pandemia vai ser suficiente para nos ensinar o que é preciso. Mas descobri um amor profundo pela família de escolha, pelos colegas de profissão, uma família que não é nada careta, que é generosa, quer a liberdade e sonha com um mundo mais igualitário. É isso que me acalma quando fico triste”, ele diz.
Nachtergaele está há cinco meses em casa, no Rio. Saiu duas vezes, no último mês, para passar dois fins de semana em seu sítio, em Tiradentes. “Na verdade, obedeci à quarentena muito profundamente. Voltei a sair um pouco sempre de máscara. Tenho ido para a ginástica, mas é supercontrolado, dois alunos por vez num espaço grande. Dei uma engordada na pandemia.”
Em Tiradentes, passou um fim de semana com seu irmão e a família quando a cidade ainda estava fechada e retornou depois de reabertos restaurantes e pousadas. “Andei pelas ruas um pouco mais afastadas da praça. Está tudo bem vazio, apesar de os turistas já estarem na cidade”, ele comenta. Começará a voltar com mais frequência, pois tem uma horta e vários cachorros – “São muitos, tenho até vergonha de dizer quantos” – para cuidar.
Ainda que seja uma presença constante nas telas durante esta quarentena, Nachtergaele, como qualquer artista, teve uma série de projetos adiados, por ora sem previsão de retorno. O que mais lhe dava gosto é o musical Molière, que montou com Renato Borghi há dois anos, e sairia em turnê pelo país a partir de abril.
Premonição
“É a história de Molière e seu antagonismo com Racine e a relação do rei Luís XIV com as artes, de como a arte interessa ou desinteressa aos poderes. É uma peça muito premonitória. Eu estava quente pelo teatro quando a pandemia chegou. Vendemos ingressos em Fortaleza, São Luís, Recife, íamos voltar com ela para o Rio, mas tudo foi cancelado. O Borghi está com 80 anos. Como os ingressos não foram devolvidos, sabemos que as pessoas estão esperando pela peça. Acredito que no ano que vem a gente possa sair em turnê”, diz.
Também entraram em modo de espera alguns filmes. A comédia Cabras da peste, de Vítor Brandt, estrearia no mês passado. “É um fruto de Cine Holliúdy, que faço com o Edmilson (Filho, também seu parceiro na série), em que fazemos dois policiais, um cearense e um paulistano, que saem atrás de uma cabra raptada por traficantes em São Paulo.”
Não fosse a quarentena, a segunda temporada de Cine Holliúdy já teria sido gravada. “Acho uma série importantíssima, pois é um desses trabalhos para o brasileiro voltar a gostar de si. É um festival de alegria com humor, crítica, e tem um pressuposto bonito: de como a TV e o cinema podem conviver. Mostra o sonho de brasilidade que pode resistir ao mau-caratismo, que na política brasileira é eterno. Amo este trabalho que é um pouco como O auto da compadecida, um projeto de todo mundo junto, independentemente de idade ou sexualidade.”
O ator não quer falar de política, mas comenta achar que as últimas eleições presidenciais foram resultado de “um voto deprimido que o Brasil realizou, um voto de abandono do sonho de Brasil. Para mim, Cine Holliúdy é um trabalho para todos fazerem as pazes com o nosso país e tomar uma decisão bonita em 2022”.
Já em fase de finalização estão dois outros longas: Clube dos anjos, de Angelo Defanti, baseado em um conto de Luis Fernando Veríssimo, e Carro rei, de Renata Pinheiro, uma “ficção científica ‘agrestina’, totalmente antifascista”, comenta o ator.
Monólogo
Mesmo com tantos projetos no campo do audiovisual, Nachtergaele afirma que sua alegria maior é no palco. Na falta dele, adaptou o monólogo O processo de conscerto do desejo, espetáculo que criou a partir dos poemas de sua mãe, Maria Cecília Nachtergaele, para uma live apresentada em junho no projeto #Em Casa com o Sesc (transmissão já vista por quase 24 mil pessoas).
“Apesar da ausência do público, que, para mim, é praticamente a morte do teatro, a experiência on-line me fez sentir muito vivo. O fato de a pandemia nos impedir de estar juntos dá às lives o status de teatro.”
Para os palcos ele tem ainda dois projetos. Um deles, já inscrito em alguns editais, é a fábula A onça, as guinés e os cachorros, de Ariano Suassuna, desenvolvida pelo mestre paraibano com o maestro pernambucano Clóvis Pereira. “É como um Pedro e o lobo brasileiro, com a Orquestra Sinfônica Brasileira, em que faço o narrador, função que Ariano executou quando apresentou a peça.”
O outro, ainda em fase de produção, é um monólogo que Nachtergaele está escrevendo a quatro mãos. Seu parceiro na empreitada é o poeta paulistano radicado em BH Flávio de Castro.
“É um monólogo resposta ao que estamos sentindo agora. Está ficando muito bonita, é uma peça que clama por brasilidade, que teme o apocalipse e que elogia os valores mais profundos que o Brasil conseguiu construir, no sentido mais libertário e positivo até hoje.”
Ou seja, quando tudo voltar (ou não?) ao que era antes, o ator espera estar pronto. “Fiquei anos sem fazer teatro, então estou me cuidando para, quando voltar, estar bem. Flexível, sensível, bravo, mas com a boa brabeza. Quero, junto com todo mundo, entrar em catarse a respeito de tudo que está acontecendo agora.”