Desde que a pandemia do novo coronavírus começou, atingindo números assustadores de infectados e vítimas em todo o mundo (o número de mortos ultrapassou na semana passada a casa dos 700 mil), aplausos presenciais ou das janelas para médicos, enfermeiros e outros profissionais da saúde se tornaram merecidamente comuns.
Porém, para alguns desses trabalhadores, não necessariamente no front de enfrentamento à COVID-19, tal reconhecimento não é novidade. Eles estão acostumados a dividir seu tempo com outro tipo de atuação, nos palcos ou sets de filmagens, onde consolidaram obras que também fazem a diferença para o bem-estar da população diante da doença.
Para quem tem tanto a medicina quanto a arte como ofícios, a conexão entre as duas áreas oferece ensinamentos e reflexões importantes para acreditar em dias melhores. “Nesse período, muitas possibilidades se fecharam, enquanto outras se abriram. Só que a vida é assim. Com tantas mudanças, é preciso saber se adaptar o tempo todo, improvisar, ser flexível, e a dança é justamente isso”, afirma a bailarina Lina Lapertosa, que integrou a Cia de Dança Palácio das Artes desde os anos 1980 até dezembro passado.
CONSULTÓRIO Agora, Lina se dedica integralmente à medicina, atividade com a qual sempre conciliou a dança. Ela leva para o consultório o que aprendeu nas décadas dedicadas à arte. “O corpo é o meio para sairmos das angústias, das inseguranças, incertezas. A dança tem um poder de auxiliar nessa situação”, diz a ginecologista e obstetra, que relata um aumento no número de pacientes com enfermidades psicossomáticas, causadas por stress, durante a pandemia.
“É um tempo muito difícil. É um vírus novo, estamos todos aprendendo com ele, com a evolução dele, aprendendo a cada dia com ele. O importante é viver o presente, o hoje. Não procuro imaginar como será, mas o que pode ser feito agora. Muita coisa está mudando, inclusive na dança, com aulas on-line, lives de espetáculos. É um caminho interessante para todos. Quem mexia só com o corpo agora também mexe com tecnologia. É difícil prever como será o futuro, mas sairemos fortalecidos, essa é a minha esperança”, diz a médica e bailarina.
Lina tem esperança também em uma maior valorização da cultura e da saúde por parte do poder público. “A medicina, a ciência e os artistas têm feito muito pela população, ajudando a manter as coisas positivas para quem está em isolamento. É preciso ter paciência, mas espero que os governos passem a dar mais valor para a cultura”, afirma.
Doc Comparato, como é chamado Luiz Felipe Loureiro Comparato, justamente por causa da formação médica anterior à atividade que o consagrou na TV e no cinema, soma experiências tanto no enfrentamento de doenças quanto na lida com narrativas cheias de mistérios, incertezas e tensões.
No momento em que o mundo inteiro aguarda um final feliz para a trama dramática que se desenrola desde o começo do ano, Doc fala sobre as conexões possíveis entre as duas atividades, que ele mesmo define como “processos curativos e criativos”, respectivamente.
“Quais são as qualidades dos processos criativos e curativos? No criativo há o foco, a concentração. Na medicina, também. Há o foco naquele paciente, não pode se perder, entrar em pânico, como numa guerra em que há centenas de feridos esperando um atendimento. Numa situação como a de agora, de pandemia, é preciso uma concentração, como o escritor precisa. É necessário também inspiração. Para o artista, ela vem com uma música, uma visão. Para o médico, pela gravidade do momento, de salvar aquela vida, já que cada caso é um caso. Além disso, há a memória, que nos possibilita criar links entre os conhecimentos adquiridos, e a autoconfiança. Quando escrevo, preciso banir a crítica. Quando trato um doente, tenho de confiar no diagnóstico que eu mesmo fiz”, diz ele.
Doc Comparato exerceu a medicina antes de se envolver com a dramaturgia, pela qual já foi premiado várias vezes, por filmes, séries e peças que escreveu. Autor das séries televisivas Mulher (1998), O tempo e o vento (1985) e Lampião e Maria Bonita (1982), além de trabalhos internacionais, e parcerias com nomes à altura de Gabriel García Márquez, ele entende que, apesar das transformações impostas pela pandemia, “os sentimentos se mantêm muito vivos no nosso ser, e a arte e a dramaturgia continuam como a reflexão do ser humano e a expressão da nossa imaginação".
ESPELHO O escritor observa que “continuamos vendo disputas de poder, populismos, nações brigando, ambições, paixões, medo. Tudo está envolvido nessa transitoriedade, e a arte é um espelho e uma janela disso tudo”.
Para ele, esse momento de grande incerteza é comparável a um suspense. “Vivemos sob grande expectativa agora, da cura, de como as coisas vão caminhar, se a vacina vai chegar, mas ainda não é possível ver uma luz no fim do túnel. Então, tudo fica suspenso , no ar, ou seja, suspense. É uma situação que não pode se manter por tanto tempo na dramaturgia. Se há suspense demais, há a crise para o escritor, o bloqueio, pois ela é paralisante. Mas temos capacidade de mudar a situação, justamente com nossa criatividade. Somos capazes de adaptar, mudar, e vencer. Depois da crise vem o clímax e o progresso”, diz, revelando sua esperança.
“É pensar na tragédia grega, na epopeia. Nossos laboratórios são muito bons, assim como nossos médicos, teremos um desfecho como o da epopeia, que traz o reconhecimento do herói. E assim é na história, tanto que, na Idade Média, depois da peste veio o Renascimento”, opina Comparato.
O ator Gustavo Werneck, que concilia a medicina na saúde pública com as artes cênicas, com a companhia Encena, de Belo Horizonte, destaca o esforço simultâneo dos profissionais das duas áreas. “Não estou na linha de frente (do enfrentamento à COVID-19), mas acompanho a exaustão, a perplexidade, a exposição que os profissionais de saúde têm enfrentado nesse esforço heróico durante a pandemia. Para mim, que sou do SUS (Sistema Único de Saúde), todo profissional de saúde tem um dever com a população. Então vejo como um momento de doação, de solidariedade, que vem de uma vontade mundial de fazer, de encarar. Ao mesmo tempo, os artistas têm esse papel de aquecer os corações, essa onda de mostrar que estamos juntos. Vimos vários exemplos na música, também no teatro, de muitas iniciativas importantes que surgiram nesse período.”
Longe dos palcos devido à suspensão dos espetáculos presenciais, Gustavo diz que tem trabalhado no desenvolvimento de projetos para o futuro. Assim como Lina Lapertosa, ele espera um maior reconhecimento para a classe artística no futuro.
“Há uma esperança. Os artistas sofreram muito nesse período, com o ganha-pão comprometido, mas se colocaram na cena. É uma coisa nunca vista e os artistas se colocaram justamente para dar esse toque de esperança, de que a coisa vai passar, de que vamos seguir. Vejo que há muito chão para andar, mas os artistas do teatro, do cinema vão ter uma papel muito importante de retratar esse momento, de retratar os sentimentos que já vão surgindo, porque isso atinge a vida de todos e aí entra o papel de arte de captar e retratar tudo isso.”