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Escritores, artistas e músicos falam sobre saudade na quarentena

“Estou só e sonho saudade”, escreveu Fernando Pessoa certa vez. O verso, entre tantos já feitos sobre o sentimento que traduz falta ou ausência – e parafraseando Pessoa, algo que só falantes do português conseguem sentir bem, porque têm a palavra saudade –, revela muito dos tempos de agora. Já no quinto mês da quarentena em decorrência da pandemia do novo coronavírus, não há como não sentir saudades.


Ouvimos de escritores, artistas, músicos as saudades de cada um. Ela pode ser de algo muito simples, como sentar numa sala cheia de desconhecidos para ver um filme, segundo descreve o ator Odilon Esteves. Ou então de algo inimaginável em tempos normais, como o pó de asfalto que a escritora Cidinha Campos tanto quer sentir de novo.

Para o escritor Sérgio Alcides, a saudade do agora é partida ao meio, resultado de um mundo caduco, “agora que ele parece finalmente estatelado”. E há ainda outra saudade muito difícil, aquela de perder alguém. “Saudade sem esperança”, é como a chama a artista plástica Jeane Terra. Enfim, saudades. No plural.

Troco o mato verde pelas buzinas 

>> Cidinha Ribeiro, escritora

“Sinto as mesmas faltas que todas as pessoas. De andar na rua, de ver gente, de conversar, de abraçar, de ver o neto crescer, de comemorar aniversários, mas uma ausência na minha vida considero peculiar. Moro em uma fazenda no interior de Minas e costumava ir a Belo Horizonte para consultas médicas. Acabava aproveitando para ir ao cinema, ver exposições, visitar minha melhor amiga. Tamanha é minha saudade da cidade grande que poderia propor uma troca esquisita. Eu daria passarinho cantando, água pura, mato verde, fruta no pé, horta de couve, ar puro, silêncio por uns dias na capital mineira, com carros correndo nas ruas, muita gente, buzinas e fumaça, lojas cheias, cheiro de gasolina, pó preto de asfalto.”



Música em tempo real 

>> Rafael Martini, compositor, arranjador, pianista e professor da Escola de Música da UFMG

“Minha saudade é a da sala de aula, principalmente da (disciplina de) prática de conjunto, que para mim é onde se forma o músico. No ensino da música, o grande lance acontece em tempo real, e a tecnologia ainda não permite tocar junto ao mesmo tempo. Para quem está fazendo o percurso formativo e para quem ministra, que é o meu caso, a maior frustração é tocar em conjunto. Temos alternativas, subterfúgios, através de vídeos em que um grava primeiro e o outro completa. Isto dá para formações menores, com duas, três pessoas. Mas sou diretor da Gerais Big Band (grupo da Escola de Música), que tem um trabalho superimportante e impossível de ser feito agora. Há semestre que chegamos a 50 alunos.”

A falta (sem esperança) de perder alguém 

>> Jeane Terra, artista plástica

“Como moro no Rio, prometi às minhas duas enteadas de 6 anos levá-las para conhecer o Parque Guanabara, o parque da minha infância. Falei com elas, mostrei as fotos, então tenho vivido essa saudade de viver em Belo Horizonte. Tenho outra saudade que chamo de saudade sem esperança, que vejo amigos viverem agora. São pessoas que perderam pessoas. A saudade de perder alguém é uma saudade que a gente não resolve. Meu trabalho fala muito sobre memória. Quando perdi minha família, fiz uma mala de ferro com o escrito ‘saudade sem esperança’ com pregos. É um trabalho bem forte que fala sobre perder alguém e nunca mais resolver esta saudade. E hoje estamos todos vivendo o medo de perder. O desejo que todos nós temos é de estar junto de novo, ter uma boa saúde, abraçar os amigos. As outras coisas conseguimos resolver.”

Compartilhar sons, imagens e emoções

>> Odilon Esteves, ator

“Estou com saudade de ir ao cinema. É muito diferente de ver um filme em casa. Gosto do ritual de tomar banho, deslocar-me, comprar o ingresso, entrar em uma sala com outras pessoas que não se conhecem, mas que, por alguma razão, optaram pelo mesmo programa e compartilham durante uma ou duas horas, além dos sons e das imagens projetadas na tela, uma cadeia de reações perceptíveis, suspiros, risadas, sutis comentários, uma pulsação coletiva, formas distintas de perceber o que se passa. E, ao mesmo tempo, a sensação de pertencimento a um grupo de pessoas que se interessa por aquele determinado tema, ou por aquela linguagem, ou por aqueles artistas. Quantas vezes não vi um filme ser aplaudido no final, mesmo na ausência da equipe?! Quando isso acontece, é um congraçamento. E há cinemas que atraem plateias ótimas... e uma boa plateia (o que é sempre uma sorte) pode enriquecer um filme. Pequena Miss Sunshine, por exemplo, assisti a uma sessão num shopping center em que a plateia blasé fez com que o filme perdesse a graça. E já tinha visto o mesmo filme, em dois outros cinemas, em sessões absurdamente vibrantes. Em casa até se pode forjar a experiência: deixar o celular desligado, fazer pipoca, apagar a luz, aumentar o som da TV. Mas fazer parte de uma plateia me faz falta.”



Arte para conectar com a vida 

>> José Alberto Nemer, artista plástico 

“Entre as várias atividades a que me dedico nessa quarentena para buscar equilibro, paciência, resignação e saúde mental para enfrentar este momento, está a arte. Criei uma rotina de trabalho que não tinha antes. Acredito que isto seja uma tentativa de impor a mim mesmo a atividade de criação como um processo de recuperação e de conexão com a vida. É sabido que a criação é um dos processos mais indicados para o reequilíbrio das pessoas. Por extensão, acredito que a arte nunca foi tão necessária tanto para quem faz quanto para quem a usufrui. É claro que a fruição da arte em tempos normais costuma ser muito mais livre e diversificada. Vimos a arte onde e como queríamos, nos ateliês, nas galerias, nos museus. Agora, restrita ao ambiente virtual, ela se restringe, mas não se extingue. O corpo a corpo com a arte faz falta, mas devemos aceitá-la provisoriamente, como quem chupa uma bala com papel.”

Brasil de Elizeth Cardoso e Celso Furtado

>> Sérgio Alcides, poeta, tradutor e professor da Faculdade de Letras da UFMG

“Nos tempos atuais, a saudade é partida ao meio, como no Estrambote melancólico de Drummond: “Saudade sob aparência de remorso". Sentimos falta de um mundo caduco, agora que ele parece finalmente estatelado, bem diante dos nossos pés. Estamos nostálgicos do mal-estar familiar, a que já vivíamos habituados. Agora, além das crianças negras e pardas assassinadas pela polícia, além dos índios esbulhados e esbugalhados por 'empreendedores', além das mulheres estupradas e acusadas de terem a culpa, também somos obrigados a aceitar as estatísticas pandêmicas. Mas, como os mil cadáveres diários não estão empilhados na porta de casa, a sensação de normalidade se propaga junto com o vírus, enquanto o Exército estoca sua cloroquina. Feliz é a ema do Palácio da Alvorada, que na sua cabecinha do tamanho de uma bola de tênis tem mais inteligência do que milhões de humanoides viciados em WhatsApp e shopping center. Mas ela também deve ter suas saudades, principalmente de não ser importunada. O que já é bem melhor do que sofrer por ilusões perdidas. Por exemplo, pela ilusão de viver num país democrático, por isso mesmo capaz de um dia superar sua herança de iniquidades – o Brasil de Elizeth Cardoso e Celso Furtado, que completam 100 anos, e não o do desembargador da carteirada, que tem mais de quinhentos.”

Teatro que alimenta a alma

>> Marcelo Veronez, ator e cantor

“O que mais sinto falta é de fazer teatro. Não sinto saudade de show, nem live fiz, mas o teatro traz uma falta que não imaginei que fosse sentir. Há quatro meses sem atuar, estou enlouquecendo para voltar para o palco. Estreamos, em junho de 2019, O auto da Compadecida, montagem do grupo Maria Cotia, dirigida por Gabriel Villela em que faço  o Padre João e o Diabo. Até fevereiro foram quase 60 apresentações. Tínhamos, até outubro, uma agenda com temporadas em outras cidades e festivais. Até este espetáculo, o último que eu tinha atuado era Os saltimbancos, de 2011. Então, vivi oito anos sem teatro, por que não posso ficar alguns meses?”