Aos ventos do Movimento Ar, manifesto que combate racismo, a atriz Zezé Motta, 76 anos de idade recém-completados, não é de rodeios ao falar sobre discriminação racial: “Que falta ar, já percebi, há tempos”. Para além do ar, a consagrada atriz, que é um emblema na trajetória do cinema, também nota lacuna de espaço no meio audiovisual.
“Temos que fazer com que nossos projetos cresçam e apareçam. Não estamos mais, como negros, para o papel de marginalizados e dependentes”, observa. Vencedora do Troféu Candango de melhor atriz (no Festival de Brasília que a projetou como Xica da Silva), Zezé Motta percebe avanços inquestionáveis, atuais, quando baliza um retrospecto da carreira no audiovisual.
“Sou de um tempo em que me intrigava ter tido uma bolsa de estudos para o Teatro Tablado, e, ao longo da profissão, me ver abrindo porta e fechando porta e servindo cafezinho. Ficava triste de estar em cena sempre na cozinha, sem ocupar as ruas ou mesmo aparecer num supermercado que fosse”, reforça.
Com um currículo notável — que traz participações em obras como Quilombo (1984) e M8 (2019) —, Zezé Motta abriu trincheiras para talentos negros muitas vezes sufocados. Criadora do site Mulher no Cinema, Luísa Pécora projeta uma lista renovada de talentos de interpretação, quando o assunto são as atrizes negras.
“Destacaria Mawusi Tulani, Isabél Zuaa, Shirley Cruz e Grace Passô, que, obviamente, já é um nome consagrado no teatro, mas que vem ganhando público no cinema”, comenta a jornalista.
Com a profusão de talentos, como estaria a superação de estereótipos na telona? Graduanda em Letras, a crítica mineira de cinema Yasmine Evaristo, presente no site Clube da Poltrona, percebe mudanças em marcha. “O estereótipo está tão imbricado na nossa cultura, que a desconstrução dele nas telas está acontecendo gradualmente. Falta deslocar a pessoa negra de personagens ligados à escravização ou marginalização, e colocar-nos para interpretar o que é concebido, visto ou entendido como situação comum e universal”, avalia.
A reboque de um protagonismo mais visível, na pele de mulher negra, Yasmine lista movimentos como Black Lives Matter e discussões sobre racismo explicitadas pelas redes virtuais como focos para quem realiza arte.
“Noto que o pensamento coletivo apresenta resultados e que toda mulher negra que realiza, pesquisa e produz materiais sobre cinema é parte disso. A voz de uma impulsiona a voz das outras”, explica a cinéfila.
Na opinião da premiada cineasta Sabrina Fidalgo (do curta Alfazema), a evolução e as modificações na representação da mulher negra virão no momento em que salas de roteiristas passem a ser encabeçadas por profissionais negras. “Haverá andamento quando cineastas como eu tiverem o mesmo privilégio em editais e fomentos para a realização de nossas narrativas com protagonismo negro e feminino”, pontua.
Entusiasmada com o impacto de empreendedoras do audiovisual estrangeiro como Shonda Rhimes, Ava DuVernai e Mati Diops e demais mulheres em posições criativas de poder, Sabrina vê mais do que moderação, quando o assunto são as criadoras negras. “No Brasil, grandes empresas e produtoras ainda nos enxergam como “café com leite” e com “certo receio”, que pode ser entendido meramente como racismo mesmo”, observa.
Sabrina Fidalgo preconiza a mudança urgente da manutenção do racismo estrutural e da supremacia branca no audiovisual do país. “Faltam oportunidades para a quebra de paradigmas. Caso grandes produtoras e emissoras não banquem a contratação de mulheres negras como autoras de suas obras e chefes de grandes projetos, não avançaremos nunca nesse sentido”, sublinha a artista.
Nada de escravidão
Elemento fundamental para o sucesso de Café com canela, a premiada atriz Valdinéia Soriano, vencedora de troféu Candango, também tem olhar crítico para a questão. “Fico incomodada com produtos audiovisuais que busquem a imagem do negro num lugar da escravidão: como se ele fosse passivo e ficasse à mercê da salvação dos brancos. Podemos (negros) falar de qualquer coisa: não, exclusivamente, de racismo”, reitera.
Em Café com canela foram tratadas, como ela diz, sensações que as mulheres brancas também sentem. “Há situações comuns e que podem ser interpretadas, sim, por atrizes negras. O leque tem que ser ampliado”, comenta a atriz, atualmente vista na TVE Bahia, com a série Pequeno gigante.
Atriz do Bando de Teatro Olodum, que interpretou a mãe de Tim Maia em longa-metragem, Valdinéia lista infinitos talentos entre as colegas, todas com densas capacidades cênicas: Ruth de Souza, Mariana Nunes, Taís Araújo, Chica Xavier e Adriana Lessa, Cris Vianna estão no rol. A veterana Léa Garcia (a quem preparou para o elenco do longa Um dia com Jerusa) tem lugar afetivo pela “força incrível”, dada a inspiração e o fato de ser um “presente para o audiovisual”.
Versátil em longas como O jardim das folhas sagradas e Revolta dos Búzios, Valdinéia aponta situações incontestáveis para reforçar a tese dela de não ver “cineastas interessados em trabalhar com atrizes negras”. “Dia deses, me pediram para indicar filmes com pares românticos pretos. No caso do cinema nacional, você bate a cabeça para encontrar. Daí os artistas negros estão apostando nos seus quilombos. Procuramos quem se interesse, no meu caso, pela atriz preta. Seguimos batendo em portas, e empurrando algumas delas”, conclui.
Entrevista // Zezé Motta
Denúncias, cobranças e lutas para uma “virada de jogo” dos colegas negros, por maior visibilidade, inflamam a atriz, cantora e ativista Zezé Motta. Ela percebe vagareza na ocupação de espaços. Pelo movimento negro, Zezé já testemunhou criação de um centro de formação e documentação para artistas negros, tornado site, mas que parou dada a falta de patrocínio.
“À época das pesquisas, eram 500 atores negros elencados somente em quatro estados”, recorda. Zezé vê um subaproveitamento de talentos, em cinema e tevê. “Nos palcos, com produções musicais e com dança, é diferente. Há peças só com elencos negros, de sucesso”, destaca.
“À época das pesquisas, eram 500 atores negros elencados somente em quatro estados”, recorda. Zezé vê um subaproveitamento de talentos, em cinema e tevê. “Nos palcos, com produções musicais e com dança, é diferente. Há peças só com elencos negros, de sucesso”, destaca.
Como está o Brasil no audiovisual quando vemos a representatividade nos Estados Unidos?
A gente tem que apostar na nossa cultura, fazer arte em cima da nossa realidade. Não importar o cotidiano de outro país. Temos o nosso histórico, ainda que o negro encontre afinidade com realidades americanas, por exemplo, a partir de limitações financeiras e da discriminação. Isso é um problema recorrente nos Estados Unidos também. O racismo está em qualquer parte do mundo. É preciso ressaltar, aliás, que, por toda a sorte, nem todos os brancos devem ser vistos como racistas.
Sou de uma época em que vigorava uma falsa democracia racial. Racismo era velado. Agora, o racismo está escancarado. Os jogadores de futebol são agredidos em pleno exercício da profissão e há atrizes que sofrem agressões nas redes sociais. Não precisamos copiar as contradições dos Estados Unidos. Lá se fala em grupos de minorias enquanto, no Brasil, nós, negros, somos mais de 50%.
Como vê a adoção, vez por outra, da expressão pardo?
Sou de uma época em que vigorava uma falsa democracia racial. Racismo era velado. Agora, o racismo está escancarado. Os jogadores de futebol são agredidos em pleno exercício da profissão e há atrizes que sofrem agressões nas redes sociais. Não precisamos copiar as contradições dos Estados Unidos. Lá se fala em grupos de minorias enquanto, no Brasil, nós, negros, somos mais de 50%.
Como vê a adoção, vez por outra, da expressão pardo?
Eu tinha pavor que, na minha certidão de batismo, estivesse escrito “parda”. É horrível o tom da palavra! Sou negra. Vieram tantas definições: cabocla, mulata, preta, negra. Ouvi um rapaz dizer que era necessário abolir a expressão negro, uma vez que tudo o que é ruim “é chamado de negro”. Consultei até meu ex-marido, africano, um expert no tema, e ele disse que não vê diferença. O moço quase me convenceu a suprimir a palavra negro. Acerta quem me diz negra ou preta!
Qual o andar da representatividade no cinema?
Qual o andar da representatividade no cinema?
Caminhamos a passos lentos. Mas vi conquistas em 50 anos de carreira. Sou da época em que onde atuasse Neusa Borges, eu não poderia estar. Só havia lugar para uma atriz negra. Era um tempo em que estava a Chica Xavier ou a Ruth de Souza; no qual estava Léa Garcia ou então outra. Personagens estavam longe da diversidade. Eram poucas personagens negras para o número de artistas disponíveis. Eram tipos sempre subalternos, isso sem contar as produções que imprimiam escravidão.
Vivíamos sempre empregadas, motoristas e mordomos. Nada contra representar essas classes! Mas os personagens não tinham vida própria: vivam a reboque dos personagens brancos. O cenário era sempre o do emprego: sem filhos, marido ou mesmo casas. Algo a ser modificado.
Vivíamos sempre empregadas, motoristas e mordomos. Nada contra representar essas classes! Mas os personagens não tinham vida própria: vivam a reboque dos personagens brancos. O cenário era sempre o do emprego: sem filhos, marido ou mesmo casas. Algo a ser modificado.