A movimentação, prevista também em outras cidades, ecoa o que vem ocorrendo nas últimas semanas no Brasil e no mundo. Em nosso país, manifestos de representantes da sociedade civil, suprapartidários, unem lados outrora opostos em defesa da democracia e contra o governo federal.
Os desafetos Lobão e Caetano Veloso, para citar o exemplo mais claro, estão entre os milhares de signatários do Movimento Estamos Juntos. Em sua primeira semana (ao lado de iniciativas semelhantes, como Somos 70% e Basta), a ação colocou lado a lado artistas, atletas, profissionais liberais, juristas, políticos, celebridades e anônimos.
Ao redor do mundo, o assassinato de George Floyd, negro que morreu sufocado por um policial branco na cidade norte-americana de Minneapolis, provocou reação em massa em diversos países. Protestos contra o racismo ganharam as ruas e as redes sociais. Bey- oncé e Rihanna, entre outras estrelas da música, denunciaram a intolerância racial, enquanto gravadoras fizeram greve, na terça-feira, em solidariedade aos manifestantes. Isso tudo vem ocorrendo a despeito da pandemia do coronavírus, que colocou o Brasil como novo epicentro da crise sanitária.
Afinal, há algo de novo nesta crescente onda de insatisfação? “A quantidade de crises juntas, da maneira como está o projeto de corrosão por dentro das instituições democráticas, é algo inédito na história do Brasil”, atesta Heloísa Starling, professora de história da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
A autora do livro República e democracia: Impasses do Brasil contemporâneo lembra que está longe de ser a primeira vez em que se ameaça o regime democrático no país. “A diferença é que o processo é outro, pois a destruição está sendo de dentro das instituições. Além disso, a conjunção de crises – política, econômica, sanitária, instabilidade institucional – é inédita. Agora só falta uma crise social.”
Para Heloísa, é positivo ver a sociedade civil se mobilizando por meio de manifestos, “tentando conversar fora de seu campo ideológico”. Mas isso é apenas um começo, adverte. “Se der certo, vai chegar a uma frente ampla o suficiente para a defesa da democracia, e isso não tem nada a ver com partido político e eleição.”
EFICÁCIA
A semana foi marcada por postagens de brasileiros nas redes sociais com o símbolo do movimento Antifa (antifascista), nascido entre os anos 1920 e 1930, durante a ascensão da extrema-direita na Alemanha e na Itália. O ativismo virtual é positivo, na visão da historiadora. “Qualquer forma de as pessoas defenderem seus direitos, a democracia e a liberdade é legítima. Agora, qual é a eficácia da ação? Sugiro que as pessoas pensem sobre isso. Elas têm de transformar palavras em ação. Se as redes conseguirem isso, ótimo. Se não, o que se está fazendo não passa de brincadeira.”
A rua é uma questão diferente, observa Heloísa. “Tem o movimento de setores da sociedade que estão disputando as ruas com o pessoal da direita. Mas há grupos organizados cuja motivação não é clara”, diz a professora, referindo-se a um provável retorno dos black blocs.
“O que vi, principalmente em Curitiba (no início da semana), me disse algumas coisas sobre 2013. Os black blocs apareceram naquela época quebrando tudo e depois sumiram. Agora, vimos o pessoal quebrando vidraça (na capital paranaense, houve depredação de prédios públicos e particulares, incluindo o Tribunal de Justiça). Não sei o que é isso, mas é o pior que se pode fazer.”
Integrante do Departamento de História da UFMG, a professora Regina Helena observa a atual situação brasileira com um ar de déjà vu. “Governos autoritários republicanos nós já tivemos, como também uma associação com os militares. E o que acontece quase sempre no Brasil é o agravamento das condições das desigualdades sociais. As classes populares sempre perderam. Não é que esses elementos se repetem, eles são estruturantes da nossa sociedade.”
Pandemia
Para ela, a situação só vem se complicando com a pandemia. “Mais que agravou, parece que é sem solução, pois temos um governo sem o menor controle, que parece apostar na morte.” Na opinião de Regina Helena, o medo é a reação primária. “Há o medo de um autoritarismo grave, ditatorial, como também o medo de as coisas mudarem, deixando de ser como sempre foram. E ainda o medo da doença, de que tudo exploda mais aqui do que em outros lugares.” Por outro lado, observa, assiste-se ao movimento de organização e solidariedade, “infinitamente maiores nas favelas e entre os pobres do que na classe média”.
De acordo com ela, a visibilidade é a novidade não apenas deste momento, mas de outras manifestações ocorridas no século 21. “As formas como a gente fala, se expõe e debate, antes eram controladas. Agora, não.” No entanto, o resto permanece igual, observa Regina Helena.
“Vejo manifesto, hashtag, várias ações conclamando as pessoas a estarem juntas e unidas contra um inimigo maior. Mas este é o histórico do Brasil. O inimigo maior pode ser o comunismo, um elemento externo que veio nos atacar, ou o racismo. O que está acontecendo é parte constitutiva de nós. Então, usamos as armas de sempre, a conciliação. Mas a conciliação pelo alto”, diz ela, exemplificando com o movimento das Diretas Já, na década de 1980, visto como referência para os manifestos atuais.
“No início, houve participação das torcidas, por exemplo. Mas depois o que houve foi um imenso arranjo, com decepção e tristeza. O que hoje vem sendo denunciado é o resultado dos arranjos das Diretas”, finaliza.