Nas últimas semanas, países que conseguiram controlar a COVID-19 vêm tentando retomar parte das atividades sociais, interrompidas durante meses pelo avanço do novo corononavírus. Neste planeta apavorado pela velocidade da contaminação e a possibilidade de outras pandemias, surgem imagens emblemáticas sobre como poderá ser o futuro, marcado pelo distanciamento social.
Em parques, são demarcados os lugares onde as pessoas devem ficar. Em pátios escolares, crianças estão “confinadas” sobre quadrados no chão, desenhados com giz. Nas praias, veem-se banhistas isolados, e não mais a colorida confusão de guarda-sóis. Nos restaurantes, clientes usam equipamentos de proteção em volta do rosto. Reais ou fictícias, tais cenas viralizaram nas redes sociais.
Entre o excesso de imaginação e a realidade concreta, especialistas em arquitetura, urbanismo e design traçam cenários pós-pandemia. Mudanças já são previstas para o interior das residências, onde grande parte da humanidade se trancou nos últimos meses.
“Alguns ambientes domésticos demandam mais privacidade onde antes se procurava integração”, afirma a designer de interiores Iara Santos. De acordo com ela, essa seria a consequência imediata do convívio mais intenso das famílias, cujos integrantes, antes da pandemia, passavam pouco tempo juntos em casa.
HISTÓRIA
A designer considera difícil identificar claramente tendências para o futuro, embora observe que mudanças pareçam inevitáveis. “Vimos isso em vários momentos da história, mesmo sem ser por causa de pandemia. O apagão (em 2001) trouxe um tipo de conscientização que ocasionou mudanças de materiais e na iluminação de ambientes, por exemplo. Porém, tudo ainda é muito subjetivo. Pode ser que tenhamos mais portas nas casas, mais isolamento acústico, mais valorização do próprio espaço.”
O arquiteto mineiro Marcos Nobre nota que, na prática, algumas características já se “redesenham”. Ele cita as solicitações para que projetos residenciais incluam o genkan – hall típico do Japão e lares orientais, criado para guardar os sapatos de quem chega da rua. Isso já é consequência da preocupação em evitar a contaminação por meio dos pés.
“Com a reestruturação dos espaços, teremos a volta do minimalismo, muito usado nos anos 1980, com a redução dos excessos. Há conforto, mas com estruturas mais básicas. O tempo passado em casa fez muita gente perceber que o excesso de coisas traz dificuldades de limpeza e manutenção. A quarentena possibilitou essa percepção para muita gente”, argumenta o arquiteto.
Nobre prevê espaços de convivência configurados com mais divisórias, o que deve ocorrer também em veículos. “Haverá um certo afastamento corporal”, diz, observando que tais mudanças são sociais e comportamentais.
“Outras mudanças no planeta, como as ocasionadas pela Revolução Industrial, geraram transformações quando as pessoas passaram a ficar menos tempo em casa, dando lugar a residências cada vez menores”, explica.
Mudanças de valores e costumes têm impacto sobre a arquitetura. “É sempre um jogo de vai e volta. Nos anos 1990, a tendência no Brasil foi fechar varandas. Hoje, as pessoas querem ter uma área externa novamente, algo intermediário entre os mundos externo e interno, em vez de janelas e cortinas”, explica.
A leitura histórica é fundamental para pensar o futuro. “Os espaços de convivência são vários – corporativo, residencial e público. Cada um terá uma situação diferente, mas em comum há o olhar mais sensível, mais poético, para a vida. Isso se reflete tanto na casa, no lar, quanto no espaço urbano. Durante o isolamento social, as pessoas tiveram de entender sua própria casa de outra forma. Até então, consideravam o lar como dormitório, porque a preocupação era trabalhar, viajar, independentemente de a residência ser bonita ou feia, pequena ou grande. Em muitos casos, não havia um traço afetivo”, afirma o arquiteto de interiores Geraldo Ferreira.
“A casa terá de agregar mais funções, como era antigamente. Antes da Revolução Industrial, você tinha o ferreiro e o padeiro com seus ofícios vinculados à casa, que ficava ao fundo do comércio. Depois, tudo foi fragmentado e segmentado, assim como a própria linha de produção. Você passou a ter a casa onde dorme, o local onde trabalha e um deslocamento longo entre os dois”, destaca Ferreira. Na opinião do arquiteto, o momento é de repensar esses espaços a partir da revisão de costumes.
“Com a quarentena, houve quem pensasse que mora num lugar grande demais, ou pequeno demais. Essa percepção não é prática, não é racional, mas nota-se a necessidade de mudar. Claro que depois há a racionalização, entram os custos e a necessidade de dinheiro para realizar tais mudanças. Porém, o olhar ficou mais sensível”, acredita o arquiteto.
CIDADE
O mesmo ocorre em relação aos espaços urbanos. “Se antes achávamos que a cidade é só um lugar para você passar de carro, fica o entendimento de que ela também deve ser a extensão da sua casa. Especialmente a mobilidade urbana é a parte mais sensível. E não há saneamento básico para 30% a 40% da população brasileira. A pandemia veio alertar ainda mais sobre essas necessidades. É uma questão econômica e política também”, destaca o especialista.
Por outro lado, Geraldo Ferreira não acredita no distanciamento social como novo parâmetro. “A aglomeração é inevitável neste nosso modelo de vida. As cidades reforçam o nosso instinto de socialização, de troca de serviços, de cultura e de entretenimento. Desde que o ser humano desenvolveu a agricultura, ele vive na cidade. Durante as pandemias anteriores – a peste negra, a gripe espanhola –, houve isolamento, mas depois se retomou a convivência nas cidades”, observa.
De acordo com o arquiteto, cabe à ciência a criação da vacina, e o isolamento será fundamental enquanto isso não ocorre. Quando a COVID-19 for controlada, haverá um retorno à convivência social, embora de forma mais sensível, acredita.
“Antes da pandemia, grandes empresas especializadas em pesquisa de tendências já reforçavam o que experimentamos nas duas primeiras décadas deste século: o slowly. Ou seja, a necessidade de desacelerar, de tentar ser mais sustentável, de consumir menos”, lembra Ferreira. “Então, é uma tendência que revestimentos e tecidos sejam mais naturais, sensíveis ao toque. Cores terrosas nos remetem à natureza, nos conectam, nos aquecem. Isso estará presente na arquitetura e no design”, prevê.
RUPTURA
Myriam Bahia Lopes, professora da Escola de Arquitetura e Design da Universidade Federal de Minas Gerais, acredita que as mudanças vieram para ficar. “Essa inflexão é uma ruptura, uma transformação. Não tem volta. O retorno à normalidade de que muitos falam não existe”, defende a historiadora, que coordena o Núcleo de História da Ciência e da Técnica da instituição.
Autora do livro Corpos inscritos: Vacina antivariólica e biopoder, Myriam Lopes diz que a transformação tem vários desdobramentos. “Nossa primeira casa é o corpo, e essa ruptura passa de uma forma muito visível pelo corpo. A proteção passa pelo uso de máscaras, pela interdição ao toque. Toda esta forma de ser, de se expressar e de existir foi impactada. Há novos modos de coexistência, temos de pensar a nossa existência no planeta”, defende.
Destacando a relação destrutiva do ser humano com o meio ambiente, seguindo a lógica do sistema produtivo, a professora reforça que mudanças no espaço estarão acompanhadas de transformações comportamentais. “Tudo terá de ser repensado. Nos países onde resolveram retomar aulas em creches, vimos a cena desoladora das crianças, no pátio, com aqueles quadrados, sem poder sair ou se tocar. Esse contexto sociotécnico faz com que corpo e espaço se transformem”, observa a professora.
“Podemos vislumbrar pequenos aspectos, mínimos, mas que são grandes desafios. Hoje, por exemplo, não temos o espaço da rua para a democracia. Como ela vai se reinventar? A rua é superimportante para a democracia, desde o início”, lembra. “Seria uma mudança gigantesca. É preciso repensar desde como a sociedade terá suas representações democráticas até como me comunicarei com alguém que não vê a metade do meu rosto”, conclui Myriam Lopes.