Na era do coronavírus, a janela e a varanda são a nova rua. Tal e qual o efeito dominó do vírus, as vozes que vêm de edifícios e casas ganham a vizinhança e se amplificam nas redes sociais. Se os chineses gritavam mensagens de apoio de suas janelas durante a quarentena em seu país, foram os italianos que levaram a música para a esfera do conforto, da solidariedade e do escapismo frente à pandemia.
Varreu mundo o vídeo do tenor Maurizio Marchini da sacada de sua casa, em Florença, interpretando a célebre ária Nessun Dorma, de Turandot, última ópera de Giacomo Puccini (1858-1924). O Brasil da última semana assistiu (e participou), de casa, de tudo. Houve panelaços contra os pronunciamentos do presidente Jair Bolsonaro, palmas para os profissionais da saúde, e música, muita música, de diferentes maneiras.
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Príncipes George, Charlotte e Louis homenageiam profissionais da saúdeCom papel toalha, Regina Duarte faz nova crítica à quarentenaComediantes não perdem o humor mesmo confinados Mari Palma e Phelipe Siane são afastados de programa na CNN por cautela quanto ao coronavírusGusttavo Lima faz show de 5 horas na sala de mansão em Goiás Nesta quarentena, Olavo Romano dá lições de ócio pra lá de criativoDiretor que viveu só com a família 10 anos no mar conta segredos do isolamentoVinte anos depois de lançada, Dias melhores, canção do Jota Quest, com letra e música de Rogério Flausino, foi capaz de emocionar seu autor de uma forma surpreendente. Na noite do dia 21, o primeiro sábado do isolamento social recomendado pelo prefeito Alexandre Kalil, em BH, e por autoridades de saúde e governos em diversas outras cidades do país como medida para conter a disseminação do novo coronavírus, Flausino recebeu um vídeo que mostrava, de diversos prédios em Santos, São Paulo, as pessoas acompanhando o refrão “Vivemos esperando/Dias melhores pra sempre”.
“Você não imagina um negócio desses, pois nunca tinha acontecido nada parecido. Era muita gente”, conta Flausino, que logo viu o vídeo ser replicado de “forma exponencial”. A baiana Margareth Menezes também vem acompanhando a agitação em Salvador. Volta e meia aparece alguém na janela gritando o refrão de Faraó divindade do Egito (Luciano Gomes dos Santos), o primeiro samba-reggae gravado da história. “Eu falei faraó/êêêêê faraó” virou quase um grito de guerra durante a quarentena.
“A musicalidade de Faraó é muito peculiar. Já vi muitos vídeos e até no condomínio onde moro. Achei engraçado demais, pois é uma maneira que as pessoas têm para ‘colorir’ esse momento de reclusão e apreensão”, afirma Margareth, que foi a primeira a gravar a canção, ao lado de Djalma Oliveira, em 1987.
Passados 33 anos de seu lançamento, Faraó já teve inúmeros intérpretes, como Olodum, Banda Mel, Daniela Mercury, Ivete Sangalo. A própria Margareth já a regravou em várias ocasiões. “É inexplicável, ainda mais quanto se pensa que essa música tem tantos anos. Canto na maioria dos shows, e ela traz sempre o mesmo efeito.” Faraó, gravada quando ela tinha 23 anos, foi também sua primeira canção a chegar às rádios.
FESTIVAIS
Margareth e Flausino, por sinal, se somam às dezenas de cantores e bandas que, iniciado o período de isolamento social, têm levado música para as pessoas por meio das redes sociais. Das artes, a música foi a primeira a se unir e reagir no período de quarentena. Ao longo da última semana, assistimos a festivais on-line serem criados do dia para a noite, com apresentações intimistas da casa de cada músico.
A música, especialmente a canção popular, vem marcando períodos difíceis da história. “O que me chama a atenção é que há canções que acabam sendo definidas pelo processo histórico da qual participaram, a ponto de o lado estético ficar em segundo plano”, comenta o jornalista Rodrigo Merheb, autor de O som da revolução: Uma história cultural do rock 1965-1969 (2012).
Ele cita como exemplos Blowin’ in the wind (Bob Dylan) durante a Marcha dos Direitos Civis nos EUA, em 1963; Apesar de você (Chico Buarque) e Pra não dizer que não falei das flores (Caminhando) (Geraldo Vandré), no período mais duro da ditadura militar, após o AI-5, de 1968; Alegria, alegria (Caetano Veloso), no impeachment de Fernando Collor, em 1992.
“Desde a época da Revolução Francesa (1789-1799), com A marselhesa, a música tem esse aspecto inspiracional”, diz Merheb. Para o jornalista, canções que ganham as ruas (agora, as janelas) são “vibrantes, com refrões fortes, que têm uma certa vibração para ressoar”.
Reconfiguradas neste período de recolhimento, as canções ganham novas nuances. Dias melhores, Flausino conta, nasceu da maneira mais prosaica possível. Lançada no álbum Oxigênio (2000), foi composta por ele muito antes.
“Estávamos numa van, indo para um show. No meio do caminho, ficamos sabendo que a apresentação tinha sido cancelada. Eu me lembro da van dando a volta na estrada e voltando para BH. Comecei a escrever o poema na aba de minha agenda. Fiquei brincando com os versos, pois estava chateado. Aquilo ficou guardado, até que, por volta de 1998, virou a ideia para uma música.”
Lançada em 2000, Dias melhores só foi vingar mais tarde. A gravadora da banda, Sony Music, não apostou na canção. Flausino conta que, quando entrou o ano de 2001 o próprio grupo, ainda acreditando no poder da canção, resolveu bancar a empreitada.
“Fomos para Fortaleza, chamamos o Pietro Sargentelli (que dirigiu vários clipes da banda), alugamos um helicóptero e fomos para o primeiro centro de captação eólica do Brasil, onde filmamos o videoclipe.” Dois meses mais tarde, ocorreu o 11 de Setembro e a canção, aí já bem executada nas rádios, ganhou outra conotação.
MOLECADA
“Com o tempo, ela ganhou diferentes contornos. Ela é muito pedida, e a gente quase sempre libera gratuitamente para campanhas sociais ou ligadas à ecologia, educação e saúde. A molecada também canta muito no fim de ano na escola, direto pinta vídeo de formatura com ela. Mas gente na janela do prédio foi foda, realmente me pegou”, comenta Flausino.
Pego de surpresa foi também o policial militar aposentado Luciano Gomes dos Santos quando começou a receber, da reclusão de sua casa, os vídeos com Faraó das janelas. “A gente fica feliz, gratificado, de ver a força que ela tem em situações difíceis”, comenta ele, que compôs Faraó em 1986.
“O tema do carnaval do Olodum em 1987 seria “Egito dos faraós”. Eles distribuíam, e ainda fazem isso até hoje, uma apostila para que os compositores pesquisassem sobre o tema. Eu me aprofundei legal, procurei livros fora, pois não sabia nada sobre o Egito, como ainda não sei até hoje. Mas como eu participava de muitos festivais e blocos, já tinha sido campeão do festival do Olodum, e fui convidado a compor”, conta Luciano.
Ele se debruçou durante uma semana para escrever Faraó. “E ela acabou se transformando no hino do samba-reggae. Tem gente que acha que é axé, mas axé é Luiz Caldas, Chicletes, Bell Marques, Durval Lelys. Mas não Faraó, que é uma música representativa dos blocos afro”, explica o compositor. E, agora, também representa um alento para quem está impedido de ir para as ruas.