Movimento punk compra briga com o governo Jair Bolsonaro

Festival Facada Fest, do Pará, é investigado por suposta ofensa à honra do presidente. Autor do cartaz que motivou a denúncia diz que ação "é um ataque ao livre pensamento" e aponta censura

Pedro Galvão 08/03/2020 04:00
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O chavão “o punk não está morto”, mais comum na grafia inglesa “punk is not dead”, se justificou no noticiário brasileiro na última semana. O festival musical Facada Fest, realizado desde 2017, no Pará, e dedicado ao punk rock, virou alvo de investigações da Polícia Federal e da atenção do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro.

Tudo por conta de um cartaz de divulgação, publicado no ano passado, que, no entendimento das autoridades,  trazia uma imagem possivelmente criminosa contra o presidente Jair Bolsonaro. O festival nega as acusações e alega que houve censura por parte do governo.

Embora esses acontecimentos sejam recentíssimos, o enfrentamento entre o punk e o poder é tão antigo quanto o próprio movimento, que há mais de 40 anos se coloca como uma das mais representativas formas de contracultura no mundo e ganha novos elementos no Brasil atual.

A decisão do ministério de abrir inquérito para investigar o suposto crime contra a honra do presidente e apologia ao homicídio se tornou pública na última semana, tendo sido confirmada em nota oficial da pasta, que afirma: “A denúncia contra os cartazes do festival foi feita pelo Instituto Conservador de São Paulo. Como se tratava de ofensa ao presidente da República, o Ministro da Justiça foi chamado a se manifestar nos autos pelo Procurador-Geral da República”.

O ministro Sergio Moro usou sua conta no Twitter para dizer que a iniciativa do inquérito não era dele, “mas poderia ter sido”. “Publicar cartazes ou anúncios com o presidente da República ou qualquer cidadão empalado ou esfaqueado não pode ser considerado liberdade de expressão. É apologia a crime, além de ofensivo”, escreveu.

Moro se referia ao cartaz de 2019 que anunciava a edição “3.2” do Facada Fest, em Belém, realizada em agosto, depois de seguidos cancelamentos.

Bozo

Na peça, assinada pelo ilustrador Paulo Victor Magno, o palhaço Bozo aparece empalado por um lápis gigante e usando uma faixa presidencial com o número 171. Membros das bandas participantes, bem como produtores do evento, foram interrogados pela Polícia Federal, em Belém, no último dia 27.

Em nota publicada no Facebook, o coletivo que organiza o festival classificou o inquérito como “perseguição de Sergio Moro ao rock paraense”. “Com tantos problemas ocorrendo neste momento no país – motim de policiais militares, degradação ambiental na Amazônia e os indícios cada vez mais fortes de ligações entre políticos e milicianos – causa-nos espanto o uso do aparato judicial e policial de nosso país na repressão de um festival de música, criminalizando a atividade artística e a liberdade de expressão, garantidas pela Constituição de 1988, a Constituição Cidadã”, diz o texto.

Paulo Victor Magno entende a investigação como um “ataque direto contra a liberdade de expressão”, segundo afirma ao Estado de Minas. “Os cartazes no punk sempre foram de contestação, independentemente do tipo de governo. Essa ação é um ataque ao livre pensamento. A imagem é uma sátira ao governo, contra a situação precária que vivemos na educação e outros setores. Não há ataque a honra, nem apologia à violência. Apologia à violência é um candidato à presidência pegar um tripé e falar que vai fuzilar a oposição”, argumenta o ilustrador, destacando que não há traço que identifique Bolsonaro na imagem.

O artista explica que a ideia inicial na arte do cartaz era um protesto contra o descaso das autoridades municipais de Belém em relação à cidade, mas que o palhaço, “representando o governo federal como um todo”, foi incluído “porque, na época, aconteciam desmontes na educação e cortes de verba”, sendo o lápis a “representação da vitória da educação sobre a ignorância”.

Ele prossegue sua argumentação: “É uma perseguição, que nem é mais velada. Quando usavam adesivos de Dilma Rousseff nos tanques de gasolina ou bonecos do Lula enforcado em manifestações não acontecia nada, então é preocupante o governo se empenhar em ir atrás disso agora, com tantos problemas maiores na área de segurança para resolver”.

Abertura

Vocalista da banda Delinquentes, uma das mais antigas do punk rock no Pará e escalada para o Facada Fest, Jayme Katarro observa com preocupação a situação. Segundo ele, quando o grupo se formou, em 1985, “apesar de não haver internet, a gente podia falar e fazer os cartazes que queríamos, era um momento de abertura”.

Katarro diz que as capas de disco no punk rock, hardcore e no heavy metal, nacionais ou estrangeiras, sempre foram bastante agressivas. “Não existia censura, isso permeou minha vida dentro da música. Pegamos todos os governos da redemocratização, desde o Sarney, passando por Collor, FHC, os do PT, e sempre fizemos nossas críticas, nunca passamos por isso que aconteceu agora. Fica o receio de abrir um precedente, mas sabemos que nenhum crime foi cometido e dá até mais força para seguir na resistência”, diz o músico.

Outro caso de atrito entre poder público e a música punk ocorreu no carnaval de Recife. A banda local Devotos, uma das mais icônicas do gênero no país, alega que teve um show ameaçado pela Polícia Militar. Segundo nota publicada pelo grupo, quando eles tocaram uma versão de Banditismo por necessidade, originalmente gravada por Chico Science e Nação Zumbi, o vocalista foi avisado por um membro do staff da banda que “a polícia não havia gostado do conteúdo das letras e ameaçou, caso o show continuasse com 'esses temas que citam a polícia', acabar com show e levar Cannibal (vocalista) preso”.

A nota do Devotos ainda diz: “Se isso não for censura, não sabemos o que é. O show continuou, eles não subiram no palco nem tocaram na banda, mas a ameaça foi feita”. A apresentação fazia parte da programação oficial da folia de rua pernambucana. Também em nota, a PM do estado disse desconhecer o ocorrido.

Em seu posicionamento, a banda Devotos, fundada em 1988, afirmou ter “uma linguagem coloquial, urbana, de denúncia, de alerta e de posicionamento, usando a música como arma” e que “infelizmente, estamos vivendo um regime de repressão velada, que para a maioria é normal, mas para quem trabalha com cultura, e cultura voltada para o resgate social, como é o nosso caso, sabe que estamos sendo minados, perseguidos e ameaçados de não exercer nossas ações. Querem calar nossas vozes”.

Metalpunk

Os acontecimentos geraram alerta também em BH. Envolvido com a produção de shows e eventos voltados para a música underground na capital mineira há 15 anos, o produtor Gabriel Herege, que há oito organiza o festival Metalpunk Overkill, teme que episódios assim se repitam por aqui.

“Preocupação em relação à censura sempre tivemos. Muitos eventos terminaram por intervenção da polícia, mas hoje estamos caminhando para uma ditadura, com um estado nitidamente cercando toda forma de expressão que vá contra o que eles imponham”, afirma.

Segundo Herege, “o propósito dos nossos eventos sempre é fomentar a cultura underground, não só o punk, mas tudo que venha a contrapor e dar uma resposta a esse sistema e esse modus vivendi no qual estamos atolados. Não é meramente musical, apoiamos causas como a libertação animal, a diversidade sexual e muita gente que não tem voz encontra nesses espaços a chance de trocar ideias”.

A próxima edição do Metalpunk Overkill está previsa para o próximo dia 21 e terá a banda finlandesa Terveet Kädet como principal atração.

Uma das maiores referências no Brasil quando o assunto é punk é o músico Clemente Nascimento, das bandas Restos de Nada, Inocentes e Plebe Rude, coautor do livro Meninos em fúria: O começo do fim, ao lado de Marcelo Rubens Paiva, que trata da eclosão do punk no país, na virada dos anos 1970 para os 1980.

Vítima da censura que vigia 40 anos atrás, quando ele lançava alguns dos primeiros títulos do punk rock brasileiro com o Inocentes e com o Restos de Nada, Nascimento não se espanta com o que se passa agora. “Se pensarmos bem, se há um governo que se declara fã da ditadura militar, é natural que ele use recursos de uma ditadura militar, como a censura. Logo logo estará torturando também”, afirma.

Dedicado à atividade musical no underground e no punk rock desde a adolescência, Clemente acredita que “essa cena atual terá que começar a tomar cuidados que se tomava nos anos 1970 e 1980, não só no punk rock, de driblar a censura com recursos poéticos, para falar do que quer. Na prática ela existe hoje”, diz o guitarrista e vocalista, lembrando que o primeiro disco do Inocentes, chamado Miséria e fome, teve 13 músicas censuradas e acabou lançado como um EP, com apenas três, em 1983. Com extensa obra, cuja maioria das composições tem teor questionador e crítico sobre a sociedade e os sistemas políticos vigentes, Clemente diz que não seria necessário compor novas músicas de protesto sobre o atual momento do país. “Tudo isso é velho. Escrevemos sobre isso que se fala agora a vida inteira. É só ouvir o que escrevemos há 40 anos. Nunca entendemos nossa democracia como plena, essas forças sempre estiveram aí, nunca esteve tudo ok. Então é só pegar e ouvir de novo”, afirma.


 






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