Festival de Arte Negra transforma BH em quilombo contemporâneo

Até domingo (24), programação gratuita destaca a força dos negros na cultura brasileira. Chico Cesar, Antônio Pitanga, Orkestra Rumpilezz, Jé Oliveira, B Negão e Juçara Marçal estão entre as atrações

Mariana Peixoto 18/11/2019 04:00
Adauto Perin/divulgação
Orquestra Rumpilezz criou arranjos para canções inspiradas no romance Um defeito de cor (foto: Adauto Perin/divulgação)

Dez edições ao longo de 24 anos fizeram com que o Festival de Arte Negra (FAN) olhasse para trás para tentar responder a perguntas do presente e imaginar o futuro. Com o tema Território Memória, o evento, promovido pela Secretaria Municipal de Cultura e Fundação Municipal de Cultura, apresenta, até domingo (24), uma série de ações – tanto na seara do espetáculo, com shows, peças e performances, quanto do debate, com aulas e oficinas. Toda a programação tem entrada franca.

“Procuramos pensar a memória, algo tão caro para os povos negros, não somente como aquilo que já passou, mas também no tempo presente”, afirma Grazi Medrado, que divide a curadoria do evento com Aline Vila Real e Rosália Diogo. “Nosso desejo é reforçar a identidade de multilinguagem do festival”, acrescenta. Realizada na Semana da Consciência Negra, a 10ª edição do FAN tem orçamento robusto, o maior dos últimos anos (R$ 2,8 milhões, recursos provenientes da PBH), e atrações de peso.

Duas delas foram pensadas para o festival. A big band baiana de afrojazz Orkestra Rumpilezz, comandada por Letieres Leite, vai levar para o Palácio das Artes, na quinta-feira (21), dois concertos em um: A sagra da travessia e Um defeito de cor. O primeiro é baseado no álbum de 2016. O segundo remete ao monumental romance da escritora mineira Ana Maria Gonçalves, lançado em 2006, que inspirou a autora moçambicana Paulina Chiziane a compor uma série de canções. Arranjos da Rumpilezz criados para elas estrearão no FAN.

Evandro Macedo/divulgação
Juçara Marçal e Jé Oliveira protagonizam adaptação de Gota d'água, peça de Chico Buarque e Paulo Pontes (foto: Evandro Macedo/divulgação)


Também a convite do evento foi criada a performance Orange Lady Universo Marku, que tomará conta do Teatro Francisco Nunes (tanto a parte interna quanto a externa) na sexta-feira (22). Filha caçula de Marku Ribas (1947-2013), a atriz Lira Ribas comanda o projeto. “Reunimos artistas que têm relação com a obra do papai, mas que não necessariamente tenham tocado com ele”, explica.

“Não queria um espetáculo a que o público apenas assistisse, mas que as pessoas tivessem contato com uma experiência, pudessem entrar no universo do Marku também participando da obra”, conta Lira. Nomes de diferentes gerações e estilos vão promover o encontro de três universos da obra do cantor, compositor, dançarino, percussionista e ator: as culturas barranqueira (do Rio São Francisco, pois Marku era de Pirapora), caribenha e africana em diáspora.

Com dramaturgia de Cidinha da Silva, a performance vai contar com o artista plástico Davi de Jesus do Nascimento (também de Pirapora), o bailarino Rui Moreira, o baterista Esdra “Neném” Ferreira e o cantor e compositor Melvin Santhana. “Fazer no Francisco Nunes é muito significativo, pois o Marku apresentou muitos shows ali”, acrescenta Lira.

Medeia

Shows e espetáculos inéditos em BH integram a programação do FAN. Na seara das artes cênicas, montagens releem clássicos da dramaturgia com elenco predominantemente negro. Diretor, dramaturgo e fundador do Coletivo Negro, de São Paulo, Jé Oliveira está à frente de Gota d'água (Preta), que terá única apresentação na quarta-feira (20), no Cine Theatro Brasil Vallourec. No texto de Chico Buarque e Paulo Pontes inspirado na tragédia grega Medeia, de Eurípedes, a protagonista Joana tem dois filhos com Jasão. Trocada por uma mulher rica, ela se vinga: mata as crianças e se suicida.

“Estava buscando clássicos que dessem conta de problemas mais urgentes de classe, raça e gênero. Ao reler Gota d'água, senti como se o texto tivesse sido escrito ontem, pois dá conta de muita coisa que eu estava vivendo”, comenta Jé. Montada pela primeira vez com elenco predominantemente negro, a peça estreou em fevereiro em São Paulo, onde cumpriu quatro temporadas com casa cheia.

Jé Oliveira dirige a montagem e interpreta Jasão – a cantora Juçara Marçal é Joana. O texto original sofreu poucas modificações. “Há um detalhe aqui e ali com a situação política atual”, afirma Jé. A música de Chico ganhou novos arranjos. “Misturamos com funk carioca e Racionais MCs, deixamos os arranjos menos eruditos. Ficaram mais populares e pretos”, adianta o diretor.

A infidelidade de Jasão vai além da questão pessoal. “É uma traição de classe e de raça, pois ele troca Joana por uma preta de pele mais clara, que representa a mulher negra alienada de suas raízes se portando como branca. Dessa maneira, a peça acaba trazendo um pouco da discussão da solidão da mulher negra”, conclui.

10º FAN-BH

De 18 a 24 de novembro. Entrada franca, com distribuição de ingressos duas horas antes de cada apresentação nas bilheterias de teatros e espaços culturais. Programação completa: www.fan.pbh.gov.br


ATRAÇÕES

SEGUNDA (18)
Vinícius Xavier/divulgação
(foto: Vinícius Xavier/divulgação)

>> Aclamação a OlOrum
O cantor e compositor Mateus Aleluia, do histórico grupo Os Tincoãs, convida Thalma de Freitas e seu pai, Laércio de Freitas, para um passeio pela música brasileira de matriz africana.
. Às 20h30. Cine Theatro Brasil Vallourec. Praça Sete, Centro

TERÇA (19)
Caio Lírio/divulgação
(foto: Caio Lírio/divulgação)

>> Embarque imediato
Peça com Camila, Rocco e Antônio Pitanga. Espetáculo celebra os 80 anos do ator Antônio Pitanga 
. Às19h30. Teatro Francisco Nunes. Parque Municipal, Av. Afonso Pena, 1.377, Centro

>> O amor é um ato revolucionário
Lançamento do álbum do cantor e compositor Chico César. ComAgnes Nunes
. Às 21h. Sesc Palladium. Rua Rio de Janeiro, 1.046, Centro

QUARTA (20)

>> Heranças ameríndias e da africanidade
Aula pública com o artista plástico, escritor e compositor Bené Fonteles, que abordará a africanidade e a herança indígena na arte brasileira
. Das 10h às 12h e das 14h às 16h. Cine 104. Praça Rui Barbosa, 104, Centro

>> Gota d'água (Preta) 
Com Jé Oliveira e Juçara Marçal. Releitura da peça Gota'água, de Chico Buarque e Paulo Pontes.
. Às 19h. Cine Theatro Brasil Vallourec. Praça Sete, Centro

QUINTA (21)

>> Navalha na carne negra
Com Os Crespos, Coletivo Negro, Cia. Dos Comuns e Sociedade Abolicionista de Teatro. Versão do clássico de Plínio Marcos pautada por questões raciais
. Às 19h30. Teatro Marília. Av. Alfredo Balena, 586, Santa Efigênia. Na sexta, haverá outra sessão

>> A saga da travessia e Um defeito de cor
Com Letieres Leite e Orkestra Rumpilezz. Show da big band de percussão e sopros, conhecida por traduzir as raízes rítmicas afrobaianas para a linguagem do jazz
. Às 21h. Palácio das Artes. Av. Afonso Pena, 1.537, Centro

>> Sambas do absurdo
Com Gui Amabis, Juçara Marçal e Rodrigo Campos, nomes da vanguarda musical paulistana
. Às 22h. CentoeQuatro. Praça Rui Barbosa, 104, Centro

SEXTA (22)

>> Orange Lady Universo Marku
Com Lira Ribas e convidados. Homenagem a Marku Ribas
. Às 21h. Teatro Francisco Nunes. Parque Municipal, Av. Afonso Pena, 1.377, Centro

SÁBADO (23)

>> Roger Deff e Imane Rane
Em carreira solo, integrante da banda Julgamento faz show com o rapper Imane Rane
. Meia-noite. CentoeQuatro. Praça Rui Barbosa, 104, Centro

DOMINGO (24)

>> BNegão canta Dorival Caymmi
Rapper revisita a obra do compositor baiano
. Às 19h. Teatro Francisco Nunes. 
Parque Municipal, 
Av. Afonso Pena, 1.377, Centro

>> Abaixo de zero
O rapper Black Alien lança seu terceiro disco
. Às 21h. Viaduto Santa Tereza, Centro

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