Com uma mochila nas costas, o argentino Diego Gamarra, natural da província de Rosário, saiu de casa aos 16 anos e iniciou um périplo pelo continente sul-americano, levando na bagagem a arte circense. Por mais de uma década, apresentou-se pelas ruas de países vizinhos, antes de entrar no Brasil, via Roraima. Mas foi em Belo Horizonte que ele encontrou um pouso fixo, há 12 anos.
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Circo do Paraná apresenta artistas brasileiros e estrangeiros em BHDomingos Montagner e Luiz Carlos Vasconcelos falam das lições que o circo ensina ao teatro, TV e cinemaGrupos de teatro e companhias de circo fazem do meio de transporte o palco de espetáculosO que deveria ser apenas mais uma curta estada em sua vida nômade se tornou porto seguro para ele exercer seu ofício e também para acolher e tentar oferecer experiência mais cômoda para outros “viajeros” como ele, que fala ótimo portunhol. Há dois anos, o argentino criou na capital mineira a Casa de Circo Gamarra, uma espécie de albergue informal, onde ele recebe quem procura um lugar para passar um tempo e exercitar livremente a criatividade.
Como artista circense profissional, Diego, hoje com 40 anos, participou de projetos socioculturais locais como o Circo de Todo Mundo, Doutores da Alegria e Fica Vivo, além de apresentar espetáculos próprios itinerantes, ao longo desses anos em que se estabeleceu em BH. A criação do espaço coletivo foi impulsionada por própria experiência na estrada. “Notava que aqui faltava um lugar onde fosse possível se hospedar sem muita burocracia. Isso é importante para quem está viajando sem um cartão de crédito, por exemplo, vivendo apenas da arte de rua”, diz Gamarra, que transformou o barraco onde vivia na Rua Conselheiro Rocha, próximo à Vila Dias, no Bairro Santa Tereza, em hospedaria alternativa e centro cultural.
ESPAÇO LIVRE Enquadrar a casa em uma definição não é fácil. O próprio Diego rejeita o título de “escola de circo”, embora haja por lá oficinas semanais temáticas de malabarismo, equilibrismo ou palhaçaria, por exemplo.
No andar superior, há um picadeiro com iluminação e estrutura para receber espetáculos e também um pequeno público, que pode se acomodar no mezanino bem rústico, onde está um recém-montado bar para comercialização de bebidas nos eventos. E, por todo o caminho, há quartos. O número é difícil precisar, já que alguns se convertem em outro tipo de cômodo de acordo com a necessidade. No momento, Gamarra recebe 17 hóspedes, incluindo outros estrangeiros, como o uruguaio Pablo Mediza.
Em peregrinação pela América do Sul, Mediza se dedica à arte urbana, malabarismo, música e body art (arte corporal). Chegou a BH há três meses, conhecendo pessoas que, assim como ele, fazem suspensão corporal. O contato com Diego e a consequente hospedagem vieram pelo único caminho possível na casa: o “boca a boca”.
O tempo de permanência é livre, como todas as atividades ali. Dalton Bill, natural de Brazópolis, no Sul de Minas, está no espaço há mais tempo do que Mediza. Dedicado ao teatro de bonecos, ele veio para BH sem lugar para ficar e vivia acampado na Praça da Liberdade, até que foi apresentado a alguém que conhecia Gamarra e se mudou para a residência alternativa. “Eles brincam que sou o zelador daqui, porque estou sempre organizando a limpeza”, diz Bill.
Além de sul-americanos, Diego afirma que também já recebeu gente da Itália, Suécia e de outros países europeus. “A casa está sempre com as portas abertas, até porque ela nunca terminou de ser construída”, brinca o argentino. De fato, o local está em movimento permanente.
“Aqui, quero oferecer aquilo de que sentia falta no tempo em que viajava. Para quem vive da arte de rua, é importante ter um espaço intimista para ficar um tempo, criar e trocar experiências e técnicas com outros artistas que estão vindo de outros lugares”, diz o palhaço e malabarista. Ele escolheu BH por considerar a cidade “multicultural”, o que favorece a arte circense, além de ter gostado do clima e, especialmente, pela posição geográfica central da cidade no continente. Diego também destaca a localização no Santa Tereza como propícia a quem apresenta números nos semáforos da região central e pela movimentada atividade boêmia e cultural no bairro.
PALHAÇARIA A ideia de portas abertas vale também para a proposta cultural do espaço. Além de espetáculos circenses, como o Cabaré Divinas Tetas, de palhaçaria feminina, agendado para a sexta passada e com novas edições programadas para o último fim de semana de abril e de maio, a casa abriga outras iniciativas, que normalmente não têm facilidade de encontrar oportunidades pela cidade.
“Já recebemos espetáculos na rua, aqui em frente, e temos eventos específicos, como festas de steampunk (gênero circense atrelado à ficção e à fantasia) e também a Festa Freak, que reúne o pessoal de suspensão corporal e da tatuagem, cultura underground que não está muito presente por aí. Aqui na casa eles têm vez, assim como o pessoal LGBT e de outros movimentos que sofrem preconceitos. Aqui cabem todas as tribos”, diz Gamarra.
Independentemente da temática, os eventos realizados por lá compartilham a característica do financiamento colaborativo e livre do público, por meio da velha e boa técnica da “passagem do chapéu”.
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