Em breve, o presidente Jair Bolsonaro vai anunciar a reforma da Lei Rouanet. Especuladas pela imprensa e redes sociais, algumas medidas representarão a mais radical mudança na espinha dorsal da maior iniciativa de fomento à cultura do país. O teto de captação para cada projeto deve ser reduzido de R$ 60 milhões para R$ 10 milhões. O número de ingressos gratuitos oferecidos por espetáculo aumentaria de 10% para 20% a 40%. Banco do Brasil, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e Caixa Econômica Federal podem deixar de destinar recursos a projetos do Rio de Janeiro e de São Paulo para enviá-los às regiões Norte e Nordeste. O próprio Bolsonaro afirmou, no Twitter, que o dinheiro público não financiará artistas famosos.
O limite do teto de captação em R$ 10 milhões provocaria, de imediato, a paralisia de projetos anuais e de preservação do patrimônio histórico. O Museu do Ipiranga, em São Paulo, por exemplo, aprovou R$ 50 milhões para 2019. Fechado há cinco anos para reformas, o espaço necessita de R$ 150 milhões, ao todo, para reabrir em 2022.
A redução do teto afetaria também o Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro (que solicitou R$ 43,3 milhões), Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo (R$ 31,4 milhões), Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo/Osesp (R$ 31,3 milhões), Instituto Cultural Inhotim (R$ 28 milhões), Museu de Arte de São Paulo/Masp (R$ 29 milhões) e Fundação Bienal de São Paulo (R$ 28 milhões).
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Henilton esclarece que não está desmerecendo o trabalho de um artista pouco conhecido. O problema é que o mecanismo para financiar essa atividade não seria o incentivo fiscal – e sim o Fundo Nacional de Cultura. “Estabelecer limite simplesmente não resolve o problema da concentração. Concordo com tetos, desde que classificados por tipo de atividade e com análise do retorno oferecido à sociedade”, opina.
A ampliação de ingressos gratuitos por projetos financiados pela Rouanet é “uma medida irresponsável”, alerta o especialista, que atribui a ideia a quem não conhece o funcionamento do sistema. “Hoje, com 10% de ingressos gratuitos, as grandes produções já têm enormes dificuldades em distribuir a cota obrigatória. Não basta dar o ingresso gratuitamente, deve-se promover o acesso de fato. Promover esse acesso não é apenas oferecer ingressos gratuitos. Se juntarmos essa medida à vedação de financiamento de espetáculos envolvendo “famosos”, a situação se complica ainda mais. Quem atrai publico, em geral, são os artistas famosos e não os anônimos”, observa.
FAMA
O fim ou a redução de patrocínios ancorados na Lei Rouanet concedidos a artistas famosos e produtores de grande porte, com a destinação desses recursos a talentos novos e desconhecidos, é alvo de polêmica.
Especialista em políticas de financiamento cultural, o advogado Fábio Cesnik prefere não especular sobre essa proposta, alegando que, até agora, há apenas rumores. Porém, questiona: “Como se define artista famoso? Como criar essa exclusão legal? Uma coisa são os rumores de imprensa e outra o que o governo deve fazer ou não. Até agora, o Ministério da Cultura prorrogou todos os projetos que vinham aprovados do ano passado. Fora o atraso de abertura do sistema, que deveria ter ocorrido em fevereiro, tudo segue normal. Se vierem medidas, quero acreditar que sejam bem amadurecidas com a sociedade e com o mercado. Ao contrário do senso comum, posso afirmar: a Lei Rouanet é um dos poucos instrumentos públicos que funciona muito bem e de forma muito organizada”, ressalta.
Henilton Menezes questiona as intenções do governo. “Quando um artista passa a entrar na calha de famoso? Por que a população brasileira não pode ver um espetáculo gratuito, ou a preços populares, de um artista famoso? Quando chegarmos a segmentos como as artes visuais, como se classificará quem é famoso ou não? Picasso é famoso? Volpi e Tarsila do Amaral são famosos? Se um artista desconhecido propuser gravar um disco com canções do Roberto Carlos, poderá ou não?”, indaga.
A questão é subjetiva, adverte o especialista. E a própria lei veda análises subjetivas para a aprovação de projetos. “Essa ação de vetar os ‘famosos’ é apenas mais uma prova de que quem decide não conhece o sistema de financiamento nem conhece a dinâmica do setor cultural brasileiro”, acredita.
O ex-secretário de fomento do Ministério da Cultura diz que a Lei Rouanet é apenas mais uma ação de incentivo fiscal para um segmento produtivo da economia. Em sua opinião, o tema não pode ser tratado de forma provinciana. “Será que incentivos fiscais oferecidos à indústria automobilística irão apenas para veículos não famosos? Ou os incentivos para a linha branca de eletrodomésticos financiarão apenas refrigeradores não famosos? Essa vedação será um grande equívoco para o bom funcionamento da lei”, garante.
ESTATAIS
Autor do Guia de incentivo à cultura, Fábio Cesnik, conhecido como o “advogado dos artistas”, analisa outra mudança ventilada: a política de patrocínio das estatais, acusadas de concentrá-los no eixo Rio-São Paulo. O governo quer transferi-los para o interior do país e outras regiões, como Norte e Nordeste.
Para Cesnik, desde que sejam respeitadas as proporções da população de cada unidade da federação, seria saudável estatais e fundos governamentais reequilibrarem algo que o mercado desequilibra.
“São Paulo tem mais pessoas do que o Acre. Então, sempre haverá um ‘gap’ na distribuição de recursos para esses dois estados, por exemplo. Portanto, se fizer sentido para as políticas das empresas estatais – muitas delas de capital aberto – e para os fundos, não vejo problema em distribuições para fora do eixo”, frisa o advogado.
Henilton Menezes diz que a desconcentração é salutar. Pode funcionar bem, se for feita de forma responsável, com critérios claros e republicanos. “Não se fala aqui de ações de famosos ou não famosos, mas sim da localização. Oferecer a possibilidade de exposições de arte, peças de teatro, shows musicais em regiões mais remotas do Brasil me parece uma medida factível. Se considerarmos que cerca de 15% a 20% de todos os recursos do incentivo fiscal são oriundos de estatais, essa ação poderia ajudar na desconcentração do dinheiro investido via incentivo fiscal. Considerando o mecanismo de financiamento via Lei Rouanet, que concorre com outros mecanismos na hora da escolha pelas empresas, meu receio é de que ele seja enfraquecido pela quantidade de barreiras criadas para esses investimentos”, afirma.
MECANISMOS
A Lei Rouanet, como é conhecida a Lei 8.313/91, instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac). Ela assim foi batizada devido ao nome de seu idealizador, o diplomata Sérgio Paulo Rouanet. A legislação foi concebida originalmente com três mecanismos: Fundo Nacional da Cultura (FNC), incentivo fiscal e Fundo de Investimento Cultural e Artístico (Ficart). O Ficart não foi implementado. Prevaleceu o incentivo fiscal, o mecenato, confundido com a própria lei.
A legislação foi regulamentada em 1995, mas só “pegou” 10 anos depois. A primeira polêmica veio em 2005, quando o canadense Cirque Du Soleil recebeu R$ 9,4 milhões de financiamento público para Saltimbanco, um dos espetáculos mais caros do mundo. O valor dos ingressos chegava a quase um salário mínimo.
“Na época, havia absoluta confusão sobre quais seriam os objetivos reais da lei e sua existência, mas o assunto ficou resolvido com um decreto, em 2006, que contemplou a necessidade de democratização de acesso, criando limitadores nos preços de ingressos. Até 2006, não havia problema em cobrar R$ 1 mil por um ingresso de espetáculo. A partir do novo decreto, isso já mudou”, lembra Cesnik.
De acordo com o advogado, todos os mecanismos de repasse de recursos públicos têm espaço para “maus gestores ou salafrários”, mas ele não acredita que a Lei Rouanet dê maior margem a abusos se comparada a outros sistemas dessa natureza.
“É preciso fiscalizar e punir, como já tem sido feito. Vide o caso da Boca Livre – operação conjunta da Polícia Federal e Controladoria-Geral da União (CGU), que detectou fraudadores da Rouanet –, que ensejou um trabalho enorme da PF e da Justiça Federal. A operação mostrou que o sistema funciona e pune quem usa mal o mecanismo”, destaca. (Com agências)
Entrevista
Henilton Menezes
ex-secretário de fomento do Ministério da Cultura
“Incentivo fiscal sempre funcionou .”
A Lei Rouanet sempre foi atacada? Ou esse processo é recente?
Não. A Lei Rouanet foi criada para ocupar um papel estratégico no financiamento da cultura brasileira. Criada em 1991, apenas a partir de 2003 ela passou a ter mais protagonismo no sistema de financiamento, época em que o Ministério da Cultura (MinC) alargava o entendimento do conceito de cultura, saindo das limitações tradicionais das belas-artes e trazendo os novos três eixos norteadores para o MinC: o cidadão, o econômico e o simbólico. Principalmente a partir de 2010, quando se ampliou a distorção promovida pelo encolhimento do Fundo Nacional da Cultura (mecanismo criado para equalizar a distribuição dos recursos), o incentivo fiscal passou, de forma equivocada, a ser o principal mecanismo desse sistema de financiamento. Isso expôs, com mais evidência, as distorções do incentivo fiscal, como se essas distorções fossem da própria lei. A lei, como criada, deveria funcionar com três mecanismos que dialogariam entre si: o incentivo fiscal, o FNC e os Ficarts.
Eles funcionaram?
O incentivo fiscal sempre funcionou e foi ampliado ao longo dos anos. O FNC foi desidratado e perdeu sua força e capacidade de investimentos. Já os Ficarts nunca foram implementados. A partir de análises feitas sobre os resultados da lei, considerando apenas de um de seus mecanismos, iniciou-se um processo de crítica, em especial pela concentração dos investimentos no Sudeste. Aliada à falta de informação, muitas vezes alimentada pela grande mídia, a Rouanet se tornou a vilã dos incentivos fiscais oferecidos pelo governo federal, mesmo sendo menos de 0,4% de todos os incentivos operados pelo Estado, em nível federal. Eventualmente, alguma irregularidade de um ou outro projeto trouxe imagem negativa para o mecanismo. Soma-se a isso, corroborando para a imagem negativa, a falta de capacidade do ministério em avaliar as prestações de contas dos milhares de projetos executados anualmente, incapacidade ampliada pela metodologia de exame dessas prestações de contas sem considerar métodos mais contemporâneos.
Por que a lei é tão atacada?
Na minha opinião, os ataques são consequência, principalmente, da falta de informação sobre o mecanismo e da ausência de análise mais qualificada, considerando os objetivos da lei e de cada um de seus mecanismos. Milhares de projetos bem executados, com retornos importantes para sociedade, não têm visibilidade suficiente para demover essa imagem negativa. Aliado a isso, ela foi vendida como mecanismo que beneficia apenas grandes artistas que defendem um determinado partido político. Tudo por falta de informação qualificada sobre os resultados da lei.
A Lei Rouanet dá margem a abusos?
Não. Os projetos passam por crivo oficial, por aprovação de pareceristas especializados e pela Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, formada por representantes do governo e da sociedade. Os valores dos itens no orçamento têm parâmetros estabelecidos pelo ministério. A execução dos projetos é feita com rigor da lei, pode ser monitorada on-line por qualquer cidadão brasileiro. Os resultados são cobrados e, caso não cumpridos, os beneficiários devolvem os recursos recebidos. Na minha opinião, entre os incentivos fiscais do governo, a Lei Rouanet é o mecanismo mais transparente. Claro que devido ao gigantismo do sistema, com a execução de cerca de 3 mil projetos anualmente, um ou outro terá problemas. Para esses, o rigor da lei.