O diretor Nelson Pereira dos Santos, de 89 anos, morreu ontem, no Rio de Janeiro, de câncer no fígado. Precursor do Cinema Novo, ele deixa imenso legado, em que se destacam as obras-primas Vidas secas (1963) e Memórias do cárcere (1984) – ambos adaptações de romances de Graciliano Ramos, clássicos da literatura brasileira.
O cineasta estava internado havia uma semana no Hospital Samaritano, na Zona Sul da capital fluminense. Às 17h, a família confirmou a morte, em consequência de um câncer de fígado diagnosticado há 40 dias.
"Ele estava ótimo, não estava doente. Foi internado com uma pneumonia, na semana passada, que cedeu. Estava lúcido, mas cansado. Morreu sem dor, uma morte tranquila, com toda a família reunida", disse a publicitária Mila Chaseliov, sua neta.
MARCO O primeiro longa de Nelson, Rio, 40 graus (1955), foi um dos marcos inaugurais do cinema brasileiro moderno. Inspirado no neorrealismo italiano, o diretor expôs a desigualdade social no Rio de Janeiro, o glamouroso "cartão-postal" do Brasil na década de 1950. Câmera na rua, atores não profissionais e negros em papéis de destaque chamaram a atenção a ponto de o filme ser vetado pela censura, em setembro de 1955, durante o governo Café Filho.
Acusado de "comunista", Rio, 40 graus só estreou em março de 1956, depois da pressão contra a censura por parte de intelectuais – Carlos Drummond de Andrade e Jorge Amado, entre eles. Glauber Rocha dizia que o longa do amigo foi "o primeiro filme brasileiro engajado".Nelson montou Barravento (1962), o primeiro longa do baiano.
PCB Homem de esquerda, Nelson era filiado ao antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB), o "Partidão". Certa vez, em entrevista ao crítico Cleber Eduardo, atual curador do Festival de Tiradentes, o diretor revelou que a equipe de Rio, 40 graus vivia em uma espécie de república artística, onde moravam o ator Jece Valadão e o sambista Zé Keti, que, além de atuar, cantava o clássico A voz do morro e assinou a trilha sonora ao lado do maestro Radamés Gnatalli. As filmagens duraram meses, com orçamento "quase zero" e macarrão alho e óleo no almoço e no jantar.
PARIS Diretor, produtor, roteirista, montador, ator e professor, Nelson Pereira dos Santos foi criado no Bixiga, em São Paulo, filho de alfaiate e de uma dona de casa. Em 1947, entrou para o grupo de teatro Os Artistas Amadores – era colega de Paulo Autran (1922-2007). Em 1949, viajou para Paris e frequentou a Cinemateca Francesa. Formado em direito pela Universidade de São Paulo (USP), foi revisor e redator.
Trabalhou em vários órgãos de imprensa: Diário da Noite (SP), Diário Carioca (RJ) e Jornal do Brasil (RJ).
A preocupação com as questões sociais foi a marca de seu trabalho desde o primeiro filme: o documentário Juventude (1949), sobre trabalhadores na capital paulista. Em 1951, Nelson se mudou para o Rio de Janeiro a convite do diretor Ruy Santos. Foi assistente de direção em Balança, mas não cai (1952), de Paulo Vanderlei, O saci (1953), de Rodolfo Nanni, e de Agulha no palheiro (1953), de Alex Viany.
Rio, Zona Norte foi lançado dois anos depois do primeiro longa de ficção de Nelson. “Se em Rio, 40 graus a câmera narra e expõe com ardor os dramas, as misérias e a contradição da grande cidade, em Rio, Zona Norte a câmera estuda o meio, documenta, pergunta, expõe, acumula dados”, disse Glauber Rocha. O olhar para mazelas sociais se aguçaria ainda mais em Vidas secas, filme baseado no romance de Graciliano Ramos, que chegou às salas de cinema pouco antes do golpe militar de 1964.
O longa conquistou o prêmio Office Catholique de Cinéma (Ocic) no Festival de Cannes daquele ano. Em 1984, Nelson voltaria a ser premiado neste evento francês com Memórias do cárcere, protagonizado por Carlos Vereza e Gloria Pires, sobre os dias de prisão de Graciliano durante a ditadura Getúlio Vargas. A produção levou o prêmio de melhor filme concedido pela crítica internacional.
LITERATURA Em 1993 – durante a retomada do cinema brasileiro –, o diretor lançou A terceira margem do rio, baseado em contos do escritor mineiro João Guimarães Rosa. Antes disso, buscou inspiração em Machado de Assis para rodar Azyllo muito louco (1970). Em 1971, lançou Como era gostoso o meu francês, tributo à antropofagia como resistência cultural. A comédia foi sucesso de público. Jorge Amado era a fonte de Tenda dos milagres (1977), entre outras produções do diretor. Não por acaso, Nelson foi o primeiro cineasta a se tornar imortal da Academia Brasileira de Letras, eleito em 2006.
Em 1980, ele celebraria novamente a cultura popular com o filme Estrada da vida, sobre a trajetória da dupla sertaneja Milionário e José Rico – os dois cantores, aliás, protagonizaram o longa. O universo musical sempre mereceu a atenção do diretor, que também homenageou Tom Jobim (A luz do tom, 2013; e A música segundo Tom Jobim, 2012) e Zé Keti (Meu compadre Zé Keti, 2003).
Dedicado ao ensino, Nelson foi professor e fundador do curso de cinema da Universidade de Brasília – o primeiro do Brasil. Também deu aulas na Universidade da Califórnia (Ucla), em Los Angeles, e na Universidade de Columbia, em Nova York. Integrou o Conselho Superior da Escola de Cinema de Havana.
Viúvo da antropóloga Laurita Andrade Sant'Anna dos Santos, que morreu em 1999, o diretor deixa quatro filhos e cinco netos.
REPERCUSSÃO
"A cultura brasileira está de luto. Perdemos hoje um dos mais importantes e premiados cineastas do país, Nelson Pereira dos Santos. Ele levou para a tela as mais importantes obras da nossa literatura. E o seu cinema retratou fielmente o âmago do povo brasileiro".
Michel Temer, presidente da República
"O Brasil perdeu um de seus maiores intérpretes. Nelson teve a ousadia dos grandes. A sua alma coincidiu plenamente com a história de nosso país. Criou uma poética do espaço brasileiro definitiva. Uma perda muito dura. Marcou a todos com a sua presença generosa e aquecida”.
Marco Lucchesi, presidente da Academia Brasileira de Letras
O cantor e compositor Caetano Veloso lamentou a morte do diretor nas redes sociais. Veja o texto:
A obra de Nelson Pereira dos Santos
2013 A Luz do Tom
2012 A Música Segundo Tom Jobim
2006 Brasília 18%
2003 Meu Compadre, Zé Keti
2003 Raízes do Brasil: Uma Cinebiografia de Sérgio Buarque de Hollanda
2000 Casa-Grande e Senzala
1998 Guerra e Liberdade: Castro Alves em São Paulo
1995 Cinema de Lágrimas
1994 A Terceira Margem do Rio
1986 Jubiabá
1984 Memórias do Cárcere
1982 A Missa do Galo
1980 Insônia
1980 Na Estrada da Vida
1977 Tenda dos Milagres
1974 O Amuleto de Ogum
1972 Quem é Beta?
1971 Como Era Gostoso o Meu Francês
1970 Azyllo Muito Louco
1968 Fome de Amor
1967 El justicero
1963 Boca de Ouro
1963 Vidas Secas
1962 Mandacaru Vermelho
1957 Rio Zona Norte
1955 Rio 40 Graus
1949 Juventude