Há exatamente 200 anos (1818), os cientistas europeus Spix e Martius percorreram Minas Gerais como parte do roteiro de sua Viagem pelo Brasil: 1817-1820. Refletindo sobre trechos dessa obra em que expõem suas visões sobre a região, e para celebrar comigo mesma o bicentenário, faço aqui um cruzamento dialogado com alguns poemas do livro Viagem a Minas Gerais, de Wagner Merije (Benvinda Editora, 2013), que acabo de ler atentamente. Aprecio esse exercício de aproximações entre assuntos parecidos, num “Encontro de tempos”, como diz Merije no poema de mesmo nome.
Spix e Martius ficaram cerca de dois meses em Ouro Preto, descreveram a extração do ouro e elogiaram as fábricas da localidade. Estiveram em Diamantina, onde destacaram a limpeza e o conforto das casas. Passaram pela Hospedaria Mãe dos Homens – que deu origem ao Seminário do Caraça. Visitaram Sabará, Serro e subiram ao Pico do Itambé, na Serra do Espinhaço. Chegaram até Minas Novas, antigamente Lavras Novas – terra das pedras preciosas.
Na apresentação de sua Viagem a Minas Gerais, o poeta anuncia que, “ao longo do percurso foram se revelando paisagens, cidades, histórias, personagens, mitos, costumes, tradições, crenças, comidas, bebidas típicas e o ‘ser mineiro’”. A obra, com 82 poemas curtos, de leitura deliciosa, revela uma Minas que foge aos padrões tradicionais do seu comparecimento na poesia.
Parece-nos que a intenção primeira de Merije é passar sua mensagem poética como se encarnasse um trovador antigo em roupagens modernas, daqueles que produzem versos, sobretudo, para ser cantados. Do ponto de vista formal, o poeta, também compositor, faz marcação cerrada no ritmo, na rima, na alternância de versos longos com versos curtos, nas anáforas, e nas enumerações caóticas típicas da poesia contemporânea.
No aspecto temático, apresenta uma excelente cobertura dos valores e sabores mineiros, as impressões que suscitam, transitando da gastronomia para a literatura, acoplando geografia e história, integrando crítica social e humorismo, exaltando a negritude e a cultura popular. Ao fim e ao cabo, o livro é uma grande declaração de amor à terra natal. Mas aqui vou abordar seu lado triste.
É óbvio que há diferenças fundamentais entre um livro de poesia e um relato de viagem, ainda mais com quase 200 anos separando um do outro. Mas o diálogo entre ambos se estabelece tematicamente, já a partir da caracterização principal do espaço e sua denominação – Minas (de ouro), desde seus primórdios. Dizem Spix e Martius que “as construções colossais de dom João V, o Aqueduto de Lisboa e o Convento de Mafra foram custeados exclusivamente com o quinto real do ouro brasileiro”.
No poema Fortuna de Minas, Merije amplia hiperbolicamente a destinação de nossos tesouros na contemporaneidade: lista sete países de três continentes, para concluir que a fortuna de Minas “está muito longe de quem convém”, ou seja, dela mesma, do Brasil, enriquecendo sobretudo a terceiros. Assim, introduz na informação um formato crítico, que o texto dos pesquisadores não tem.
Spix e Martius, guiados pelo barão de Eschwege, dirigente de minas, avaliam que “o minério de ferro existe em Minas em tal quantidade, que seria suficiente para abastecer o Brasil inteiro durante séculos”. Não era uma opinião pessimista, mas equivocada, pois não previa que o minério, a bem da verdade, abasteceria outros países e seria o responsável por tragédias como o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana.
Essa ideia de espoliação, para muito além dos minerais do século 18, repercute no poema E lá vai o trem: “Levando pra fora / Pedaços de Minas”, quer dizer, transportando o minério, que está em toda parte: “Tudo que há no mundo / Tem um pouco de Minas”.
O estado é visto principalmente como exportador de matéria-prima, ficando ele com O resto. O tema retorna em Vale do aço, em que o poeta avalia que a terra quer: “Mais coração / Menos aço”.
Lembro que os dois europeus visitaram Minas quando a exploração aurífera e de metais preciosos já se encontrava em plena decadência. A propósito de uma mina de ouro extinta, mencionam as fendas e escavações nas rochas, observando a paisagem de pedras que restou: “um profundo fosso, uma garganta de rochas nuas, cheia de fragmentos de pedras, que dava a impressão da mais selvagem destruição”. Aqui, os viajantes já acenam para o que resta da exploração sem controle.
No poema De pedra, Merije faz uma listagem exaustiva de cidades que portam o signo “pedra” em sua denominação, para comprovar que: “Somos feitos de pedra / Da pedra viemos”.
Jogando com o signo religioso “pó”, substituindo-o por “pedra”, o eu poético joga também com a riqueza do passado – que seguramente justificou o nome de batismo dessas cidades – e sua/nossa destruição no futuro, a “selvagem destruição” referida por Spix e Martius, nos dois últimos versos: “Terminaremos todos em pó / Seremos todos o futuro chão de Minas”.
A destruição e o fim das coisas são dados pelo tom bíblico da predição, “tu és pó e em pó hás-de tornar-te”. O mesmo tema é retomado em O poeta que salvou a cidade, tributo a Drummond e sua Itabira. Em referência à exploração da nova riqueza do século 20, o minério, diz que o destino dos itabiranos “Era quebrar pedra”. Mas a poesia de Drummond foi “linhas de resistência / A tentar parar aquela destruição odiosa”.
Num viés ecológico, no poema As pedras do Jequitinhonha, as pedras do rio pedem “um copo de água”, pois estão morrendo de sede. E numa perspectiva artístico-religiosa, positiva para a pedra-sabão que lava a sujeira socioeconômica ao se transformar em arte, lê-se no poema Os profetas do Aleijadinho: “Da pedra se fez o milagre / Pelas mãos do Aleijadinho”.
Assim, a maior riqueza de Minas Gerais, que encantou os viajantes europeus de princípios do século 19, é trabalhada, no século 21, com desencanto, pelo poeta belo-horizontino, através de uma espécie de trovadorismo de leveza e profundidade, em poesia sintética, na qual se misturam lirismo e denúncia social. É bom lembrar que Wagner Merije publicou seu livro antes do chamado “desastre de Mariana”, antes de o Rio Doce se transformar em Rio de Barro – Rio Amargo – devido à mineração.
Uma narrativa de viagens e um livro de poemas, caminhando em paralelas por estas muitas Minas, 195 anos distantes um do outro, num “Encontro de tempos”, num clima de alegrias, mas também de tragédias anunciadas.
Professora emérita da UFMG e crítica literária
Spix e Martius ficaram cerca de dois meses em Ouro Preto, descreveram a extração do ouro e elogiaram as fábricas da localidade. Estiveram em Diamantina, onde destacaram a limpeza e o conforto das casas. Passaram pela Hospedaria Mãe dos Homens – que deu origem ao Seminário do Caraça. Visitaram Sabará, Serro e subiram ao Pico do Itambé, na Serra do Espinhaço. Chegaram até Minas Novas, antigamente Lavras Novas – terra das pedras preciosas.
Na apresentação de sua Viagem a Minas Gerais, o poeta anuncia que, “ao longo do percurso foram se revelando paisagens, cidades, histórias, personagens, mitos, costumes, tradições, crenças, comidas, bebidas típicas e o ‘ser mineiro’”. A obra, com 82 poemas curtos, de leitura deliciosa, revela uma Minas que foge aos padrões tradicionais do seu comparecimento na poesia.
Parece-nos que a intenção primeira de Merije é passar sua mensagem poética como se encarnasse um trovador antigo em roupagens modernas, daqueles que produzem versos, sobretudo, para ser cantados. Do ponto de vista formal, o poeta, também compositor, faz marcação cerrada no ritmo, na rima, na alternância de versos longos com versos curtos, nas anáforas, e nas enumerações caóticas típicas da poesia contemporânea.
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É óbvio que há diferenças fundamentais entre um livro de poesia e um relato de viagem, ainda mais com quase 200 anos separando um do outro. Mas o diálogo entre ambos se estabelece tematicamente, já a partir da caracterização principal do espaço e sua denominação – Minas (de ouro), desde seus primórdios. Dizem Spix e Martius que “as construções colossais de dom João V, o Aqueduto de Lisboa e o Convento de Mafra foram custeados exclusivamente com o quinto real do ouro brasileiro”.
No poema Fortuna de Minas, Merije amplia hiperbolicamente a destinação de nossos tesouros na contemporaneidade: lista sete países de três continentes, para concluir que a fortuna de Minas “está muito longe de quem convém”, ou seja, dela mesma, do Brasil, enriquecendo sobretudo a terceiros. Assim, introduz na informação um formato crítico, que o texto dos pesquisadores não tem.
Spix e Martius, guiados pelo barão de Eschwege, dirigente de minas, avaliam que “o minério de ferro existe em Minas em tal quantidade, que seria suficiente para abastecer o Brasil inteiro durante séculos”. Não era uma opinião pessimista, mas equivocada, pois não previa que o minério, a bem da verdade, abasteceria outros países e seria o responsável por tragédias como o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana.
Essa ideia de espoliação, para muito além dos minerais do século 18, repercute no poema E lá vai o trem: “Levando pra fora / Pedaços de Minas”, quer dizer, transportando o minério, que está em toda parte: “Tudo que há no mundo / Tem um pouco de Minas”.
O estado é visto principalmente como exportador de matéria-prima, ficando ele com O resto. O tema retorna em Vale do aço, em que o poeta avalia que a terra quer: “Mais coração / Menos aço”.
Lembro que os dois europeus visitaram Minas quando a exploração aurífera e de metais preciosos já se encontrava em plena decadência. A propósito de uma mina de ouro extinta, mencionam as fendas e escavações nas rochas, observando a paisagem de pedras que restou: “um profundo fosso, uma garganta de rochas nuas, cheia de fragmentos de pedras, que dava a impressão da mais selvagem destruição”. Aqui, os viajantes já acenam para o que resta da exploração sem controle.
No poema De pedra, Merije faz uma listagem exaustiva de cidades que portam o signo “pedra” em sua denominação, para comprovar que: “Somos feitos de pedra / Da pedra viemos”.
Jogando com o signo religioso “pó”, substituindo-o por “pedra”, o eu poético joga também com a riqueza do passado – que seguramente justificou o nome de batismo dessas cidades – e sua/nossa destruição no futuro, a “selvagem destruição” referida por Spix e Martius, nos dois últimos versos: “Terminaremos todos em pó / Seremos todos o futuro chão de Minas”.
A destruição e o fim das coisas são dados pelo tom bíblico da predição, “tu és pó e em pó hás-de tornar-te”. O mesmo tema é retomado em O poeta que salvou a cidade, tributo a Drummond e sua Itabira. Em referência à exploração da nova riqueza do século 20, o minério, diz que o destino dos itabiranos “Era quebrar pedra”. Mas a poesia de Drummond foi “linhas de resistência / A tentar parar aquela destruição odiosa”.
Num viés ecológico, no poema As pedras do Jequitinhonha, as pedras do rio pedem “um copo de água”, pois estão morrendo de sede. E numa perspectiva artístico-religiosa, positiva para a pedra-sabão que lava a sujeira socioeconômica ao se transformar em arte, lê-se no poema Os profetas do Aleijadinho: “Da pedra se fez o milagre / Pelas mãos do Aleijadinho”.
Assim, a maior riqueza de Minas Gerais, que encantou os viajantes europeus de princípios do século 19, é trabalhada, no século 21, com desencanto, pelo poeta belo-horizontino, através de uma espécie de trovadorismo de leveza e profundidade, em poesia sintética, na qual se misturam lirismo e denúncia social. É bom lembrar que Wagner Merije publicou seu livro antes do chamado “desastre de Mariana”, antes de o Rio Doce se transformar em Rio de Barro – Rio Amargo – devido à mineração.
Uma narrativa de viagens e um livro de poemas, caminhando em paralelas por estas muitas Minas, 195 anos distantes um do outro, num “Encontro de tempos”, num clima de alegrias, mas também de tragédias anunciadas.
Professora emérita da UFMG e crítica literária