Mais de 100 anos depois, os revolucionários russos adotaram o calendário gregoriano, criado em 1582, ajustando-se à lógica europeia, num ato de ruptura com seu passado monárquico. A Igreja Ortodoxa segue, e ainda o faz, o calendário juliano. Por isso, quando falamos em Revolução Russa as datas não batem. A chamada Revolução de Outubro, portanto, de acordo com o atual calendário, ocorreu em novembro.
O atraso russo de 13 dias em seu calendário não refletia a totalidade do retrocesso em relação à Europa, Estados Unidos e Japão. Politicamente, os russos só tiveram um Parlamento livre no século 20 – por um breve período, em 1905, e após fevereiro de 1917.
No século 19, o atraso social na Rússia era evidente. A servidão no campo foi abolida apenas em 1861. Karl Marx (1818-1883) previa um desenvolvimento pleno da sociedade industrial como condição necessária para a construção de uma sociedade em novas bases. Mas essa Rússia “atrasada” contrariou Marx, pois, de maneira singular na história, pulou etapas.
SALTOS
A modernização e a industrialização da economia de um país agrário, recém-saído de uma sociedade semifeudal, foi o primeiro e mais imediato impacto dos eventos de 1917. Da condição de derrotada e humilhada por sucessivas guerras, a Rússia se transformou na chamada União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), constituindo, a partir de 1945, o posto de segunda potência mundial, atrás apenas dos Estados Unidos.
Do fim da Segunda Guerra até 1989, o mundo assistiu à bipolarização decorrente das fraturas sociais de 1917. Um terço da humanidade viveu, durante esse período, sob sistemas de governo e economias derivados de variações da fórmula social proposta pelo marxismo-leninismo surgido em 1917.
Se olharmos para o passado, veremos que a revolução gestou uma economia em que o Estado e sua burocracia cumpriram o papel que a burguesia industrial desempenhou no Ocidente, ou seja, arrancar esses países de sua base agrária e trazê-los ao mundo urbano e industrializado, fórmula que, posteriormente, seria repetida em outros países.
DITADURAS
Se o primeiro impacto da Revolução Russa foi amplamente favorável aos revolucionários de 1917, o segundo, não. O conceito de “ditadura do proletariado” e o centralismo democrático – em que pesava mais o centralismo que o democrático do Partido Operário Social-Democrata Russo –, já definiram a tendência autoritária do governo instituído em 1917.
As características singulares da história russa, sobretudo a ausência de estabilidade democrática duradoura, foram determinantes para que o Estado soviético cristalizasse o que existe de mais condenado em sua história: o stalinismo. Apesar das óbvias mudanças no período imediatamente posterior a Stalin, sua dimensão autoritária permaneceu evidente e as poucas tentativas de reformas democráticas dos estados soviéticos foram dramaticamente reprimidas. O modelo permaneceu insensível às transformações, reproduzindo as características perversas do absolutismo que havia sido derrubado em 1917.
GANHOS
Ao final da Primeira Guerra Mundial, Vladimir Lênin e os bolcheviques esperavam que o exemplo rússo promovesse outras revoluções na Europa Ocidental. Apesar das enormes perdas humanas e da demonstração da brutalidade da velha ordem mundial, as previsões não se confirmaram e, mesmo com a queda de quatro impérios – o russo, o alemão, o austro-húngaro e o turco-otomano –, as revoluções socialistas não ocorreram.
Os princípios da Revolução de 1917, no entanto, permaneceram vivos e vieram à tona após a Segunda Guerra, especialmente nas lutas anticoloniais que varreram a África, a Ásia e parte do Oriente Médio. China, Coreia, Vietnã, Angola e Moçambique foram revoluções tardias, mas que mudaram a geopolítica mundial e sacudiram as bases dos impérios europeus.
As esperadas mudanças de caráter socialista ocorreram apenas em países que, de alguma forma, já estavam sob a influência russa. A forma de governo nos moldes leninistas na Ucrânia, Geórgia, Armênia, Azerbaijão e Bielorrússia foram a resposta soviética ao bloqueio econômico e comercial imposto por Inglaterra, França e Estados Unidos, que buscavam frear o avanço da ideologia socialista na Europa Oriental e Ocidental, além de fragilizar a própria Rússia soviética.
Após a crise de 1929, os soviéticos assistiram a um triplo movimento no mundo.
Certos princípios disseminados pela Revolução Russa – a educação universal e pública, a saúde gratuita, a regulamentação das jornadas e das condições de trabalho e, o mais importante, a presença decisiva do Estado promotor da modernização e interventor na economia – se tornaram presentes na Europa e em outros países desde então.
“Ceder os anéis para não perder o dedo” ou “fazer a revolução antes que o povo a faça” foram lemas que tiveram origem na sombra soviética, projetada sobre todas as sociedades construídas na desigualdade e polarizadas pela luta de classes.
A Revolução Russa representou um denominador comum, seja naqueles casos em que se colocava frontalmente contra a ideologia, já nessa época chamada de “comunista” pelos nazistas e fascistas, assim como por aqueles que compartilhavam o mesmo background – os sociais-democratas, denominados socialistas, que mantiveram parte dos princípios revolucionários concebidos em 1917.
Se a Revolução Russa representou o início da economia planificada na URSS, no Ocidente ela decretou a morte do liberalismo e foi fundamental para o estabelecimento do futuro Estado do bem-estar social como pacto de classes e resposta ao “perigo comunista”. E, por oposição, também contribuiu para o que veio a se tornar o modelo do Estado empreendedor, nascido tanto das experiências nazifascistas como keynesianas e que, hoje, é o que de fato dá as cartas em boa parte do mundo..