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No peito e na raça

Amantes da música criticados por sua voz formam 'Coral dos Desafinados'

“Se você disser que eu desafino, amor/Saiba que isso em mim/Provoca imensa dor”, diz a letra de Desafinado, canção de Tom Jobim e Newton Mendonça composta em 1958 - um hit da Bossa Nova que traduz os sentimentos daqueles que amam cantar mas não são exatamente talhados para isso. Pois em Belo Horizonte um grupo de pelo menos 30 gogós com esse perfil encontrou um modo destemido de lidar com a questão: reuniu-se no Coral dos Desafinados.

Hoje (24/9), eles se apresentam gratuitamente no Parque Municipal, um dos palcos do 15º Festival Internacional de Corais, Bandas & Congados (FIC). A ideia de organizar o inusitado coro partiu de uma professora de canto. Formada pela Escola de Música da UFMG, Beatriz Myhrra é a regente do conjunto, que, ao contrário do que se pode imaginar, não faz feio ou leva vaia do público. Acredite: as apresentações dos Desafinados costumam terminar com pedidos de bis, algo difícil de vislumbrar quando se olha para o currículo musical dos coristas.


Suzene Fonseca é uma das mais singulares integrantes do Coral dos Desafinados. A escritora de 51 anos foi considerada inapta até para entoar cantigas de ninar. O veredicto foi dado pelos seus seis filhos, que, segundo ela, para ficarem livres da tortura sonora, mesmo ainda pequenos fingiam pegar no sono assim que ela soltava a voz. Os garotos também cassaram a licença da mãe para cantar Parabéns pra você nas festinhas de aniversário.



“Passei a dublar, né? E isso era até meio trágico, porque, com seis filhos, eu participava de pelo menos seis comemorações por ano. Mas sempre cantei de forma escandalosa e, assim que eu começava, todo mundo se virava para olhar para mim. Daí, embora gostasse muito de cantar, ficava constrangida e só mexia a boca”, conta Suzene.

Lícia Maria Teixeira – primeira inscrita no coral – também sofreu com a censura familiar. “Mãe, você canta muito feio!”, criticavam, ainda na infância, os dois filhos da assistente social. Hoje à beira dos 70 anos, ela conta que já havia se conformado em restringir sua cantoria aos momentos em que dirigia seu carro – desde que estivesse sozinha e de janelas fechadas.

Qual não foi a alegria das cantoras reprimidas ao se deparar com o post publicado no Facebook em 2015 por Beatriz Myhrra, anunciando a criação de um coral aberto a quem canta fora do tom. Surpresas, mal puderam acreditar na resposta da regente quando perguntaram se a voz delas servia mesmo para o coral. “Vocês é que terão de me dizer se o coral serve para vocês”, retrucou Beatriz.

LÓGICA INVERTIDA Farta das regras de afinação que excluem do universo musical aqueles que gostam de cantar, Beatriz explica que o Coral dos Desafinados é uma tentativa de mostrar às pessoas que a musicalidade não é privilégio de quem tem bom ouvido.
“Inverti a lógica dos coros, que é a de unificar várias vozes em uma só. Minha aposta é na diversidade. Essa é a grande beleza dos Desafinados. Cada um dos timbres do coro funciona como um tempero para as músicas que preparamos. Todo mundo pode, deve e tem o direito de exercer a sua musicalidade. A afinação é apenas um elemento da música, que é muito mais que uma nota. Meu Coral dos Desafinados não canta afinadinho, embora as vozes de muitos participantes tenham sido educadas com o tempo. O nosso negócio é explorar as diferenças como pontos fortes, não como fraquezas”, diz a regente.

Para exemplificar como isso se materializa nas apresentações, ela cita o caso de um ex-corista que não conseguia acompanhar muito bem o compasso de Marancangalha, de Dorival Caymmi.
Segundo a professora de canto, o homem não acertava o timing na hora de começar a cantar a canção. “Daí teve uma hora em que eu disse: você agora vai entrar atrasado de propósito, ok? Vamos transformar isso num temperinho e ver no que dá. E acabou ficando tão legal que aquele senhor saiu do coral e, hoje, um outro corista desempenha o papel dele”, conta Myhrra.
Até Mozart já foi interpretado pela voz irreverente do Coral dos Desafinados. Ave verum corpus foi a peça do compositor austríaco que entrou para o repertório do grupo. “Cheguei com a partitura, distribuí para os coristas, mas não contei que era Mozart. Só falei depois que cantamos um fragmento da composição juntos. Foi emocionante, tanto para mim quanto para eles, ver pessoas que não se sentiam à vontade para cantar sequer o Parabéns mandando ver nesse clássico”, afirma.

O Coral dos Desafinados acolhe qualquer pessoa que queira soltar a voz. A participação é gratuita. Uma taxa opcional de R$ 60 mensais pode ser doada pelos integrantes para cobrir despesas de manutenção com ensaios, que ocorrem uma vez por semana, viagens, entre outras atividades

MIL VOZES
O Festival Internacional de Corais (FIC) encerra hoje sua 15ª edição com apresentações de outros 39 grupos, além do Coral dos Desafinados, no Parque Municipal. Após as apresentações individuais, todos eles cantarão juntos no chamado gran finale, que desta vez presta tributo à Virgem Maria.
A edição 2017 do FIC comemora os 250 anos de peregrinação de Nossa Senhora da Piedade e os 300 anos de aparição de Nossa Senhora da Aparecida. A partir das 13h, mais de mil vozes entoarão juntas a música Marias do mundo, música tema do festival neste ano.


Coral dos Desafinados
Hoje (24/9), a partir das 9h, no Teatro Francisco Nunes do Parque Municipal (Av. Afonso Pena, 1.377); quinta (28/9), às 19h, no Centro de Referência da Juventude (Rua Guaicurus, 50, Praça da Estação). Entrada franca

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