Mais de 24 horas depois de embarcar num avião em Tóquio, o escritor e professor universitário Félix Ulombe Kaputu respirava aliviado, satisfeito com o que acabara de ouvir do piloto: a aeronave estava prestes a aterrissar em Lubumbashi, na República Democrática do Congo. Após longa maratona de palestras no Japão, o congolês estava, enfim, de volta à sua cidade. Mal sabia ele que pela última vez.
Era 2006, e Kaputu passaria os próximos 11 anos sem experimentar de novo a sensação de estar em casa. Naquele 18 de abril, a história do escritor ganhou contornos dramáticos. O homem que na véspera havia desembarcado em seu país como intelectual respeitado foi acordado pela polícia batendo à sua porta. Kaputu estava sendo apontado como líder de um movimento separatista.
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Belo Horizonte é, desde junho passado, a atual morada de Félix Kaputu, que segue sem compreender por que exatamente se tornou inimigo de sua pátria. Sua vinda foi acertada por meio de um convênio entre a Universidade Federal de Minas Gerais com a International Cities of Refuge Network (Icorn). A organização conta com uma rede de cidades que acolhem escritores, artistas e jornalistas refugiados, que sofrem com a falta de liberdade de expressão em suas nações de origem. “Meu crime talvez tenha sido me abrir para todos os estudantes independentemente de suas inclinações políticas, e pregar a crença na ciência, em vez de pregar o discurso de certos partidos”, afirma o escritor.
O Brasil é o quinto país em que Félix se refugia – nas vezes anteriores ele também estava inserido em programas e instituições que lhe permitiram continuar a escrever, lecionar e pesquisar. “A bagagem acadêmica de Félix Kaputu é muito rica. Inclui títulos de doutorado em literatura inglesa, literatura comparada e antropologia, passagens pela Universidade de Harvard, escolas tradicionais da Bélgica, além de vasta experiência docente por diversas áreas do conhecimento, como arte, religiões africanas e gênero. Na UFMG, onde o abrigaremos por pelo menos um ano como residente da Diretoria de Ação Cultural, foi convidado a atuar como professor visitante na Faculdade de Letras. Temos certeza de que tem muito a contribuir conosco”, afirma Leda Martins, diretora de Ação Cultural da universidade.
CONGADO
Esta é a primeira vez que Kaputu vem ao Brasil. A oito mil quilômetros de casa, o escritor diz que Belo Horizonte tem lhe parecido cada vez mais familiar. A observação de certas manifestações culturais da capital tem mostrado a ele que belo-horizontinos e congoleses têm mais semelhanças do que podia imaginar. “Assisti algumas vezes ao congado se manifestar nas ruas. Achei incrível. É muito interessante como existe ali uma cultura africana se perpetuando geração após geração, com muitos signos históricos comuns a diversos povos africanos – como a escravidão, obviamente. Mas, ao mesmo tempo em que os congadeiros cantam músicas que falam sobre pessoas levadas em navios negreiros e fatos do gênero, eles rogam à Virgem Maria que os proteja. Ou seja: uma determinada cultura africana atravessou o continente, sobreviveu, reinventou a si mesma e as pessoas daquele lugar. Esse é um objeto de estudo que me interessa muito. Tenho uma pesquisa nesse sentido e pretendo continuar o desenvolvimento dela aqui”, conta o intelectual.
Autor de sete livros, sendo cinco de ficção e dois acadêmicos, ele planeja escrever o oitavo em solo brasileiro. A nova obra deverá abordar os contrastes entre discurso e ações de políticos e governantes. “Eu sonho em voltar para a minha terra. A adoraria estar perto da minha família agora. Mas, como você vê, meu trabalho e meus interesses acadêmicos não facilitam muito as coisas. Cada vez que ganho visibilidade nos lugares em que me refugio, é como se eu mandasse ao governo da República Democrática do Congo o recado de que estou bem como ‘cidadão do mundo’, não quero voltar. O que não é verdade. Tudo o que quero é ir para casa. Mas também não vou me esconder. Não faz sentido viver em silêncio. Isso também não me beneficiaria ou me levaria de volta em segurança”, diz.
ARTE PERSEGUIDA
A International Cities of Refuge Network, é uma organização independente que conta com cerca de 60 nações abertas ao acolhimento de artistas e intelectuais com a vida, integridade física ou liberdade de expressão ameaçadas em seus países de origem. “A Icorn reúne essas pessoas e faz a mediação do contato com instituições de países que queiram e possam acolhê-las. A UFMG, por exemplo, além do intercâmbio acadêmico, está oferecendo ao escritor Félix Kaputu uma bolsa de manutenção”, explica a diretora de Ação Cultural da universidade, Leda Martins. A ideia é continuar o desenvolvimento da parceria internacional nos próximos anos, acolhendo outros refugiados. “A demanda, inclusive, é enorme. No mundo inteiro, é notável como as democracias vêm se desenvolvendo, mas os regimes totalitários também. A Icorn hoje apoia em torno de 150 artistas e escritores. Mas há pelo menos cinco vezes mais cabeças pensantes ameaçadas pelo planeta”, diz Leda.