Quatro dias depois de apresentar uma proposta de reforma administrativa à Câmara dos Vereadores - que inclui a recriação da Secretaria Municipal de Cultura e reestruturação da Fundação Municipal de Cultura (FMC) - o prefeito, há quem diga, reviu o discurso. Entre os que apostam na transformação está a vereadora Cida Falabella (PSOL), eleita sob a bandeira da defesa do setor cultural. “A gente vem se surpreendendo com a posição do Kalil, que mostra avanços e espaço para o diálogo. Ele quer ser letrado na cultura, assunto que não é servido no café da manhã dos nossos políticos”, analisa.
Pouco generosa para com as artes, o que a programação orçamentária da PBH para 2017 parece legitimar são as palavras ditas pelo então candidato eleito do PHS antes de substituir Márcio Lacerda - em que pese a disposição demonstrada pela PBH para revisão das cifras, após pressão da classe artística.
A Lei Orçamentária Anual,aprovada na gestão anterior para este ano, já não era das mais animadoras. Dados da Secretaria Municipal de Planejamento mostram que, do total de provisões da capital, caberia à Fundação Municipal de Cultura a fatia de R$ 62,131 milhões —valor 13% menor em relação ao ano passado. Ao Fundo Municipal de Cultura, R$ 12 milhões.
Com a reprogramação do orçamento, apresentada em 5 de abril - veio o verdadeiro choque. O novo planejamento reduziu orçamento da FMC para R$ 56.453 milhões (corte de mais 10%) e encolheu o fundo para R$ 5 milhões – dos quais R$ 1,534 milhão estão comprometidos com dívidas anteriores.
Despesas com folha de pagamento, além de manutenção e infraestrutura de equipamentos culturais da cidade consomem, sozinhas, R$ 49.354 milhões – 89% do orçamento da fundação. Restam, portanto, R$ 6,9 milhões para investir em ações de dança, música, teatro e outras
O quadro financeiro gerou mobilização de artistas, entre outras categorias ligadas a esses festivais, que temem que eles não sejam realizados este ano, possam se descaracterizar e, com o tempo, até acabem extintos, embora previstos por lei no calendário municipal. Nas redes sociais, o movimento ganhou adesão de milhares de usuários sob a hashtag #FicaFiQ, que cobra garantias de realização do maior evento de quadrinhos das Américas. Em sua última edição, ele atraiu cerca de 200 mil visitantes e custou R$ 925 mil aos cofres públicos – ampliados para cerca de R$ 1,5 milhão por meio de leis de incentivo.
Pressionada,a PBH tem dito publicamente desde a semana passada que vai garantir o cumprimento total da agenda cultural da cidade. O compromisso foi reiterado na última terça-feira por meio da assessoria de imprensa de Kalil. “Por determinação do prefeito, todo o orçamento da Fundação Municipal de Cultura está sendo revisto. É a partir dessa revisão, mais a busca de recursos na iniciativa privada, que a PBH vai garantir a realização da programação cultural da cidade”, afirmou a PBH em nota.
Os movimentos do Executivo, porém, não dissiparam o clima de apreensão que paira sobre os bastidores da organização dos festivais.“O FIQ ocorre geralmente em outubro, novembro. A essa altura, já era para a organização ter sondado convidados, verificado custos e buscado patrocínios. Mas nem o tema desta edição foi definido ainda. Sem um tostão, não há como fazer isso. O prefeito diz que vai rever o orçamento da FMC e buscar recursos privados para repor o que cortou do fomento
Na esfera do FAN – 100% financiado com verba pública – a retirada do projeto do rol das ações finalísticas gerou inseguranças. Se intenção do município é reduzir o aporte financeiro da cultura para substituí-lo por verba captada junto ao setor privado, pessoas ligadas ao movimento negro chamam atenção para a dificuldade de captação para esse tipo de evento fora do âmbito do Estado. “Imagine que as empresas, via de regra, investem no que dá retorno. Por conta do racismo estrutural, a arte negra e a cultura periférica muitas vezes não integram o horizonte de interesses dos empresários. Nós estamos em diálogo com Kalil. Eu quero crer que ele ainda vai compreender a amplitude e a relevância da cultura negra em Belo Horizonte, uma cidade com 53% de afrodescendentes”, diz Rosália Diogo, coordenadora do FAN. A última edição, em 2015, custou R$ 1,5 milhão e reuniu 135 mil pessoas.
Grupos ligados à Virada Cultural levantam mais um questionamento: sem empenho financeiro consistente do Município, alguns projetos culturais podem se descaracterizar enquanto políticas públicas. “Eu não sou contra o uso de dinheiro da iniciativa privada na Virada ou em outros festivais. A Virada, aliás, nunca foi realizada só com dinheiro público. Mas, quando ela não aparece entre as ações finalísticas previstas no Orçamento, a impressão que dá é a de que a PBH a vê como ônus. Qual é a finalidade de um festival? Meramente comercial? Desse ponto de vista, a Virada é até bem 'vendável'. Bastaria achar alguém disposto a dar grana para montar o palquinho e pagar artistas que dão Ibope. Mas ela inclui atrações regionais, intervenções nas ruas, valorização de artistas locais. Empresas investem no que dá lucro e, isso, pra elas, é prejuízo. Então, essas atividades ficariam ameaçadas”, pondera um produtor cultural engajado no evento, que preferiu não se identificar.
REFORMA Na quarta-feira 19, Alexandre Kalil apresentou à Câmara dos Vereadores o esboço da reforma administrativa, anunciada logo que assumiu a Prefeitura. No que concerne à Cultura, os principais pontos do projeto – que deve ser liberado para consulta hoje (24) – incluem a junção da Fundação de Parques Municipais e a Zoo-Botânica, além da criação da Secretaria de Cultura e reestruturação da FMC.
Os dois últimos tópicos dividem opiniões. Para o pesquisador do Observatório da Diversidade Cultural, Thiago Alvim, a medida soa incoerente com o atual momento de crise e, sobretudo, com o discurso assumido pelo Executivo. “O prefeito disse outro dia, referindo-se ao corte orçamentário, que estava 'tirando da Cultura para colocar na Cultura'. Ao vê-lo criar mais uma estrutura, não é essa a minha percepção. Diante de um orçamento defasado, é justo reduzir o fomento, que mantém a cidade viva, cogitar inclusive o fechamento de equipamentos culturais antes de enxugar a burocracia dentro da própria fundação? Ele diz que vai fazer isso absorvendo a estrutura que já existe. Mas imagine quanto não vai custar, por ano, só o salário do secretário?”, pondera Alvim.
Na outra ponta, parte da classe artística, encabeçada pela vereadora Cida Falabella, defende o retorno da Secretaria de Cultura. “Ela é necessária para discutir um modelo de cultura de longo prazo, que dê conta da grandiosidade, da eloquência, da pulsão da cultura na cidade. E isso não cabe na fundação. A cultura transborda. É também uma questão de projeção, do peso que há no fato de o secretário de Cultura poder discutir de igual para igual com os demais membros do secretariado. O ideal é que tivéssemos um tripé: a secretaria para planejar, a fundação para executar e captar recursos, e um instituto para cuidar do patrimônio histórico”, argumenta a vereadora.