"Dona Ana resolveu esvaziar as garrafas de pinga na pia da cozinha, Natinho chegou de repente, lhe arrancou uma garrafa da mão e a atirou na parede. Os estilhaços de vidro se espalharam pelo chão e cortaram os corações das crianças.” O relato da infância dura, marcada por episódios como o alcoolismo do pai e os problemas financeiros da família, surpreende. Não são temas comuns quando o personagem em questão é o padre Fábio de Melo, conhecido pelo bom humor, sobretudo quando usa as redes sociais. Está aqui um trecho compilado do Snapchat dele, que não nos deixa mentir:
Mas o mundo terreno é feito, também, de adversidades. Essas e outras vivências moldaram o caráter do religioso e estão expostas, sem filtro e com minúcias, no livro Humano demais, biografia assinada pelo jornalista Rodrigo Alvarez, que teve lançamento esta semana, em São Paulo. Começou a ser escrita há pouco mais de um ano, quando Alvarez veio ao Brasil divulgar o livro Maria, a biografia da mãe de Deus (Globo Livros), best-seller do correspondente internacional da Rede Globo lançado em outubro do ano passado.
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Formiguense sofrido
Nascido em Formiga (MG), no Oeste de Minas Gerais, Fábio de Melo sofreu com o alcoolismo do pai, uma marca de boa parte da infância e adolescência. Pelos problemas causados na pequena cidade mineira, um empecilho para conseguir emprego, seu Donato, dona Ana Maria e a família foram de mala e cuia para Piumhi, onde Fábio, irmão do meio entre sete filhos, trabalhou em obra, lavoura e padaria. Na pobreza, a família se alimentou de arroz triturado, que também era servido como alimento para porcos e galinhas.
Uma tia da família, chamada Ló, foi quem o conduziu para o seminário. A vida paroquial não foi exatamente um sonho intrínseco a Fábio, embora ele acredite na predestinação. Na obra, Rodrigo Alvarez revela que o religioso teve paixões humanas. E não só uma, mas duas — a última delas terminou o namoro diante da indecisão de Fábio entre o casamento e a batina. Isso ocorreu 10 anos antes de ser ordenado padre, evento que teve transmissão ao vivo, fato raro. O dia 15 de dezembro de 2001, definitivamente, entrou para a história do mineiro, que, atualmente, renunciou à vida paroquial para evangelizar pela arte.
Influente nas redes sociais, Fábio de Melo, aos 45 anos, esbanja simpatia. Na web, não faltam listas sobre os momentos em que ele “mitou” no Snapchat, aplicativo de mensagens instantâneas, e no Twitter, onde costuma publicar comentários irônicos. No Instagram, são mais de 2,9 milhões de seguidores curtindo postagens como a que exaltou um mimo recebido. “Cheguei em casa e me deparei com estes chocolates saudáveis que não vão morar na cintura da gente. É pra chorar em sânscrito”. Como sentencia Alvarez, o padre é pop – e humano demais.
Trechos
Quando o álcool se espalhou como praga pela família Silva, os desentendimentos entre Natinho e Ana Maria se tornaram mais frequentes. E Fábio começou a servir como desculpa para as traições do pai. Natinho botava o filho pequeno no carro, dizia a Ana Maria que ia passear com ele, mas na verdade ia se encontrar com outras mulheres. O pai comprava uma barrinha de chocolate para que Fábio se distraísse, pensava que o menino não entendia o que ele estava fazendo. Fabinho, no entanto, percebia tudo e se angustiava ao ver as traições, “sem poder dizer a ninguém”.
“Sem dinheiro para ir a um mercado comprar comida, dona Ana foi com Fábio a uma casa empacotadora de arroz comprar as sobras, o arroz triturado que era vendido por um preço infinitamente mais barato para ser usado como alimento para porcos e galinhas. “A senhora quer isso pra dar pros porcos?”, lhe perguntou o vendedor. “Não... é pra nós mesmo”, a mãe do menino admitiu, sem graça.
Quando começou a experimentar o ofício de cantor, o gosto musical de Fábio não era mais apenas religioso, mineiro, romântico e sertanejo como nos tempos em que ele ouvia discos de vinil na sala de casa. Andava fascinado pelo rock que chegava de Brasília e incendiava as rádios do país. “Será só imaginação? Será que nada vai acontecer?”. Fábio cantava, sem imaginar que muito em breve faria as mesmas perguntas de Renato Russo com relação ao seu futuro no seminário. “Será que é tudo isso em vão?” Eram os tempos da Legião Urbana, com suas melodiosas Será, Pais e filhos, Eduardo e Mônica, ou ainda Que país é esse?.
Duas perguntas para...
Rodrigo Alvarez
escritor
O lançamento do livro tem alguma ligação com os 15 anos de ordenação do padre?
Foi coincidência! Algumas pessoas até me perguntaram se ele não era novo para ter uma biografia, mas as pessoas querem saber a história dele no momento em que ele está no auge, não quando ele estiver velhinho. Talvez a veia jornalística tenha falado mais alto. Ele sempre colocou como missão evangelizar pela arte, levar as pessoas à religião por meio da música, dos programas de TV que faz. Ele é um padre moderno, multidimensional. Ele fala com as multidões e do jeito que as pessoas entendem, não tenta impor nada a ninguém. Ao contrário, tenta romper com dogmas. Libertar, e não aprisionar. Eram ideias parecidas com o que eu penso sobre a vida, também.
Muitos fatos citados no livro aproximam a história do padre com a de vários brasileiros... Houve alguma objeção à divulgação desses acontecimentos?
A maior característica do Fábio é contar a vida dele, os problemas que teve, os erros que cometeu, como um exemplo para as pessoas. Ele nunca quis esconder nada. Achou que, ao mostrar, seria uma inspiração para as pessoas: vendo a história dele, podem entender melhor como ele chegou ao que é hoje. O título do livro remete justamente a isso. Ele não é um sacerdote fingindo que é Deus. É humano o tempo todo. Não tenta explicar as coisas boas e ruins como vontade soberana, mas procura entender o que está acontecendo. Não prega alienação, milagre ou cura fácil.