Rio de Janeiro – Pisar num palco qualquer um pode. A questão é saber entrar e sair. “José Mayer é que dizia: ‘Rogéria é a rainha das entradas’”, conta hoje, aos 73 anos (52 de palco), a própria. Atriz, cantora, ator transformista? Rogéria pensa um pouco antes de dar a resposta final.
“Sou Rogéria, artista. Porque artista independe do sexo. Foi a Fernanda (Montenegro) que me disse isto.” Se não tivesse talento, não seria Rogéria. “Seria hoje um maquiador cuidando de mulheres. Não sou mulher, mas sou extremamente feminina nos detalhes.”
E todos (não, a maioria, pois ela soube bem o que deixar de fora) estão na biografia Rogéria – Uma mulher e mais um pouco, de Marcio Paschoal.
Vamos lá. Rogéria nasceu em 25 de maio de 1943 em Cantagalo, norte do Rio de Janeiro. Primogênito do casal Dídimo Acácio Pinto e Eloah Barroso, o bebê recebeu o nome do avô materno, Astolfo.
Ainda que as primeiras lembranças tenham sido contadas pela mãe, morta há cinco anos, prestes a completar 92, Paschoal relata as histórias de Rogéria (resultado de décadas de amizade e 30 horas de entrevista) com gosto. Astolfo tinha três, quatro anos quando andava pela casa da família com um pedaço de pano fazendo as vezes de cauda do vestido. Mas brincava com os meninos, e batia em quem o ameaçasse.
Sabia desde criança que não era como os outros. Apaixonou-se perdidamente aos 19 anos, quando viveu o grande amor de sua vida num casamento que durou três anos. A personalidade forte e o talento o levaram para os showbusiness. Na época, Astolfo, que já se vestia como queria, virou maquiador. No auge do Fla-Flu entre Emilinha Borba e Marlene, maquiou as duas.
O nome Astolfo já havia sido substituído por Rogério, menos formal. Rogerinho maquiou meio mundo. Da música, Dalva de Oliveira, Ângela Maria, Maysa, Elis Regina. Do teatro, Fernanda Montenegro, Sérgio Britto. Virou Rogéria no carnaval de 1964, ao participar de um concurso de fantasias.
Tinha 21 anos e um mundo para conquistar. Ao longo das décadas, o livro conta, fez de tudo. Passou longas temporadas na Europa e na África, conseguiu dinheiro e dores de cabeça. No Brasil, foi também para a televisão e o cinema.
SEGREDOS
Em meio a essas histórias, muitos (e picantes) relatos sexuais. Com anônimos, em sua maioria, e famosos também. Que ela, a despeito da passagem do tempo, não revela nem por decreto. Paschoal só mostrou o livro para Rogéria quando colocou o ponto final (este foi o combinado entre eles) e poucos retoques tiveram que ser feitos.
Ainda que o livro chegue até a atualidade, ele não consegue ter a força de Rogéria ao vivo. Uma força da natureza, que emenda um assunto no outro, sem papas na língua e muito humor.
“No dia da votação (primeiro turno) chegou uma mulher gritando: ‘Rogéria!’. Eu falei: ‘Porra, querida, não estou produzida, falar meu nome na multidão?’. É como entrar num avião agora produzida. Não consigo mais. Vou de tênis, toda escondida, não falo nada, porque minha voz entrega na hora.”
Toda Gilda quer ter seu dia de Rita Hayworth. “O glamour precisa terminar assim que entro em casa. Pum! Corta! Não posso viver o dia inteiro num personagem.” A casa é um apartamento de quarto, sala, banheiro e cozinha, onde mora sozinha. “É pequeno, mas para mim é enorme. Porque eu não vou fazer limpeza, tenho que ligar para alguém. E não vou viver num apartamento de duas suítes para falar que sou Rogéria.”
Aliás, a personagem já lhe deu muitas dores de cabeça. “A pior brochada é quando um homem está com você te abraçando e diz: ‘Te vi na televisão ontem e você estava linda.’ Falo: ‘Querido, você está falando comigo ou com a personagem?’ Nessa hora entro em conflito.”
Outro conflito é quanto aos rótulos. “Quiseram que eu fosse um transsexual na Espanha. Eu tenho uma mulher em mim, mas não sou. O Astolfo me dá muito orgulho.” E é o nome da família que ainda hoje figura em sua carteira de identidade, a despeito da figura loira que está na foto.
AMOR E SEXO
A sexualidade, por outro lado, nunca foi conflituosa. Amor, sim. “Amor ligado ao sexo e ao coração é dificílimo de conseguir. Como homem, tenho mais facilidade em ter prazer sem amar. Mulher precisa amar para ter relação sexual. Essa foi a razão de não querer ser mulher.” Na cama, ela só esteve uma vez com uma mulher (num ménage). “Gosto muito de mulher, mas amei não ser bissexual. Não tive prazer com aquela mulher que comi no livro.”
E ela continua. Não namora mais, só transa. “Eu, como senhora, prefiro um garoto de 20, 22 anos para colocar na cama, né, querida?!” Por outro lado, recebe o reconhecimento da nova geração. “Muitos jovens vêm me agradecer por ter sido a pessoa que fui. Eu não tinha siglas quando apareci. Consegui fazer meu nome, ser respeitada, sou chamada hoje de senhora. Eu peitei e consegui artisticamente meu lugar ao sol. Já fui muito truculenta, mas não tenho mais idade. Só que hoje, mesmo que veja alguém fazendo algo que não gosto, tenho outra maneira de reverter a situação.”
Se há uma coisa que a incomoda é tentar vinculá-la com algum movimento político. “Não me queira botar como deputada LGBT. Não sou política, não vou vestir rótulo de ninguém para ir para a Câmara discutir. Se fosse, a única coisa que faria seria criar banheiro para travesti, para as meninas não passarem nenhum constrangimento.”
Sem máscaras – tampouco silicone ou botox, conforme fez questão de comprovar à reportagem – Rogéria segue na carreira. Tem o lançamento da biografia, os shows que continua fazendo Brasil afora e a participação no documentário Divinas divas, de Leandra Leal, que retrata a primeira geração de travestis que chegaram aos palcos no Brasil.
Palco este em que Rogéria vai continuar, se possível, até o fim. “Não vou mentir. Se eu morresse no palco, ia ser o máximo. Até na morte você tem que ter glamour.”
A repórter viajou a convite da Editora Sextante
ROGÉRIA – UMA MULHER E MAIS UM POUCO
• De Marcio Paschoal
• Sextante
• 272 páginas
• R$ 44,90 e R$ 24,99 (e-book)..