Manoel de Barros gostava de dizer que escrevia em “idioleto manoelês archaico”. No ano em que o poeta mato-grossense completaria seu centenário, esse idioma particular reaparece nas novas edições de sua obra completa, que começam a chegar às livrarias pela Alfaguara. Morto em 2014, o autor que cantou as coisas da natureza fixou o Pantanal no mapa da poesia brasileira. Mais que isso, construiu uma poética em torno das miudezas do mundo, de tudo aquilo que é descartado e marginalizado pela sociedade. Costumava se definir como “um fazedor de inutensílios”.
Os dois volumes que abrem a reedição flagram momentos distintos da construção do “manoelês” ao longo de sete décadas de carreira. Poemas concebidos sem pecado / Face imóvel reúne seus dois primeiros títulos, lançados em 1937 e 1942, respectivamente. Arranjos para assobio, de 1982, marca a consolidação do estilo que o consagraria a partir daquela década. Todos os livros incluem itens do baú de Manoel, muitos deles inéditos, como fotografias antigas, correspondências e manuscritos de poemas, selecionados pela filha do escritor, Martha Barros.
Em meio a esse material estão cartas de Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade recebidas pelo poeta mato-grossense nos anos 1940.
“Meu pai era um funcionário da poesia, se dedicava em tempo integral a ela. Deixou uma obra linda, rica e profunda. Ele se achava um homem comum, e era. Sua alma inquieta, amorosa, simples e ao mesmo tempo complexa fez dele um pensador das coisas pequenas e sem importância, algo tão necessário neste mundo poluído e cheio de desperdícios”, diz Martha.
Inutilidade
O pensador das coisas pequenas já se anunciava em Poemas concebidos sem pecado, que publicou aos 21 anos. Em versos narrativos, repletos de personagens como Cabeludinho e Nhanhá, evoca memórias da infância no Pantanal. Face imóvel é mais marcado pela vivência no Rio, para onde havia se mudado em meados dos anos 1930. A nova edição traz o manuscrito do poema Enseada de Botafogo, que registra seu espanto diante do contraste urbano entre “carros vermelhos que levam os donos da vida” e “emigrados subjugados ao infinito”.
Publicado quatro décadas depois, quando Manoel já havia retornado ao Pantanal para administrar uma fazenda da família, Arranjos para assobio mostra o poeta em pleno domínio da forma. O livro traz lemas clássicos do “manoelês”, como “só me preocupo com as coisas inúteis”. Nesses versos, ele já é o poeta que escreve como quem olha para o solo, em busca de novas palavras para refletir sobre o universo de pedras, plantas, bichos e homens. “O chão é um ensino”, escreve.
Supervisor das novas edições, o poeta e crítico Italo Moriconi diz que a obra de Manoel está longe de ser apenas “um elogio da simplicidade”. “Manoel tem uma poética muito sofisticada, que reconstrói a simplicidade e a intuição pela linguagem.
Poemas concebidos sem pecado e Face imóvel
De Manoel de Barros
Alfaguara
128 páginas, R$ 34,90.