Carsalade brinca que há pelo menos 35 anos e seis meses a ideia do livro ronda a vida dele. Desde quando se formou como arquiteto e passou a olhar a região com uma sensibilidade diferente. “O arquiteto cria lugares onde a vida acontece”, resume. Estação em movimento: a história da Praça da Estação em Belo Horizonte observa a praça como um lugar privilegiado do encontro. Como Carsalade destaca, é uma região que já foi muito maltratada, mas nos últimos anos recupera sua vocação de palco social.
Embora a dimensão política faça parte da história da Praça da Estação, o autor propõe uma aproximação diferente. Como escritor, Carsalade tem pelo menos 40 livros e capítulos publicados, a maior parte dedicada reflexões sobre espaço público e patrimônio cultural. Como belo-horizontino, seria inevitável para Flávio falar sobre a região onde começou a trabalhar aos 13 anos, tomou caldo de mocotó ao sair do escritório, militou e defendeu o patrimônio.
Mesmo que o livro seja de grande formato, com belas imagens – como manda o manual dos bons livros sobre arquitetura – o objetivo sempre foi oferecer uma leitura saborosa. De fato é. “Não queria fazer nada que fosse muito seco”, conta. O arquiteto e escritor se permitiu brincar. Deu voz para os próprios edifícios contarem suas vidas. Com muita informação histórica e um lirismo próprio da ficção. “O estilo é o que cria personalidade para o prédio.” Nas páginas, as criaturas sobrevivem aos criadores.
A primeira a contar sua história é a Casa do Conde de Santa Marinha, em estilo bem rebuscado, que remete à nobreza do prédio erguido pelo português Antonio Teixeira Rodrigues, em 1896. Seguindo uma ordem cronológica o prédio da Companhia Industrial Belo Horizonte 104, que hoje abriga o centro cultural Centoequatro, narra seu nascimento em formato de memorandus, enviados entre 1895 e 1997.
Na sequencia, aparecem as estátuas da Praça, a escola de Engenharia UFMG, a estação Central; a Sul América Hotel; o Monumento à Civilização Mineira; o Edifício Chagas Dória; o Edifício-sede da RFFSA; o Hotel Itatiaia; a Serraria Souza Pinto; o edifício Central; peixes urbanos e, por fim, os viadutos. Ao todo são 14 personagens.
Narrativas
São bastante curiosas as narrativas dos hotéis. “O Sul Americano espiona os hóspedes. Tem essa ubiquidade, que faz com que consiga entrar na vida de cada um”, comenta o autor. Por meio do Hotel Itatiaia, construído em 1950, Carsalade fala sobre as apostas imobiliárias daquela época. “Logo que vim a este mundo, a cidade passava por um grande processo de urbanização. A meu ver, era uma urbanização que lhe roubava a urbanidade, mas quem sou eu, beneficiário direto dessa urbanização e mero edifício entre tantos, para contestar tanto esforço dos seres humanos?”, “diz” o prédio erguido na Praça Rui Barbosa, 1987.
Flávio Carsalade chama as pichações em prédios e muros da região de peixes urbanos. Seguindo lógica parecida a essa linguagem, faz uma poesia concreta com a descrição do cenário contemporâneo da área. “Pilar de viaduto. Viga de viaduto. Laje inferior de viaduto. Bolas de rua. Platibanda. Igreja evangélica. Parapeito. Marquise. Portaria (...)”. Os viadutos são outros personagens que receberam abordagem curiosa.
“Eles contam a própria história por meio de um duelo de MCs”, conta o arquiteto sobre os papeis dos viadutos Santa Teresa e Floresta. Ao apostar nessa estrutura, Flávio Carsalade fala sobre a Praça da Estação tanto do ponto de vista histórico ou técnico da arquitetura, mas sobretudo sobre a influência do espaço urbano na vida sociopolítica de Belo Horizonte.
Cunho social
Se o tradicional Duelo de MCs marca presença, também aparecem no livro recentes manifestações políticas como a praia da Estação. Carsalade abre espaço também para críticas, seja obras que estão por vir como o Centro de Referência da Juventude, como a construção do Boulevard Arrudas, que, em resumo, cobriu o curso do rio para dar lugar a mais pistas para carros.
Para Flávio Carsalade, os cidadãos comuns que diariamente passam pela Praça da Estação podem até não ter uma percepção intelectual do que o conjunto representa, historicamente, politicamente, arquitetonicamente. “Mas tem consciência de vivência daquilo.” É o que vale.
Prédios que falam
Casa do Conde de Santa Marinha
Construída com referências ao ecletismo francês e a edificações de Ouro Preto, cidade considerada “berço das ideias do país futuro”. Cita o Ribeirão do Arrudas ainda como “o belo Rio Arrudas”.
Centoequatro
Antiga Fábrica de Tecidos Companhia Industrial de Belo Horizonte. Conta sua história a partir de documentos.
Estátuas da Praça
Monumentos, que a priori ficavam na Praça da Estação, batem papo e reclamam da transferência para locais inadequados. Estrutura do diálogo lembra as conversas em chats no WhatsApp.
Edifício Alcindo da Silva Vieira
Com discurso de forte caráter existencial, diz ter visto atacadistas e prostitutas – como Hilda Furacão – se instalarem na Rua Guaicurus. “Serviço indispensável para quem chega à cidade ainda sem saber direito das coisas, para quem parte sem saber direito sobre o futuro, para quem espera, porque há que se preencher o tempo de alguma forma ou para quem simplesmente mora e sabe das fundamentais referências urbanas.”
Estação Central
Usa linguagem rebuscada. “Estejais certos de que a mim só se compara o Palácio da Liberdade.”
Monumento à civilização mineira
“Nasci para observar. Meus olhos são todo o meu corpo.”
Hotel Itatiaia
“País pensava grande: Nasci grande. Da minha janela ainda vejo obras muito parecidas com aquelas do século passado, como o Boulevard Arrudas.”
Edifício Central
Projetado para ser armazém de cereais, hoje é sede para o comércio. “O que dá vitalidade é gente nos percorrendo.”
Estação em Movimento – A História da Praça da Estação em Belo Horizonte
De Flávio de Lemos Carsalade; 176 páginas, Elos Produção Criativa. Lançamento hoje, das 10h às 12h30, no Centro Cultural UFMG (Av. Santos Dumont, 174, Centro). Venda do livro com preço promocional de lançamento a R$ 80.