Antonio Edson, Chico Pelúcio, Eduardo Moreira, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia, Paulo André e Teuda Bara se lançam. A conversa segue em ascendência até que os intérpretes começam a bradar, caem no chão. O caos. “Ih, a coisa não está fácil. Está difícil para todo mundo. Está fácil para você?”, pergunta a atriz Teuda Bara, enquanto a caipirinha demora a sair. O diálogo se repete.
Fazer diferente nunca é fácil. Aos 34 anos de carreira, o Galpão topou o desafio proposto por Márcio Abreu. Há pelo menos 10 anos o diretor radicado em Curitiba frequenta projetos no Galpão Cine Horto. Em 2014, a companhia mineira formalizou o convite para uma criação conjunta, o que só foi vingar a partir de outubro de 2015. A “condição” dada por Márcio Abreu foi a de fazer “um trabalho político”.
Daí se desdobraram diversos desafios. O Grupo Galpão é consagrado pela linguagem do teatro popular, na rua. Nós, espetáculo que estreia no próximo sábado, no Galpão Cine Horto, é totalmente diferente disso. É tão contemporâneo como nunca a companhia mineira experimentou fazer.
Você já viu alguém do Galpão falando inglês em cena, por exemplo? Ou os atores de tênis, bermuda e camiseta? Cortando legumes para a preparação de uma sopa em tempo real? Pois são detalhes dramatúrgicos que dizem sobre o todo.
“A peça será a soma dessa aventura humana de reafirmar nossa possibilidade de existência no mundo de outras maneiras que não as que nos impõem e com as quais querem que a gente concorde”, resume o diretor. A dramaturgia, assinada por Abreu em parceria com Eduardo Moreira, partiu da convivência dos artistas. O espetáculo retrata com certa fidelidade embates, sejam aqueles travados na intimidade do Galpão ou aqueles vividos das portas para fora. “(Trata-se de) Um questionamento para onde a gente pode ir, o que podemos construir e reconstruir”, diz Moreira.
O título escolhido para a 23ª montagem foi propositadamente dúbio. Como primeira pessoa do plural, Nós diz sobre o coletivo. Significa também os nós a serem atados e desatados. É aí que se encontra a dimensão política da peça.
GUERRA Em novembro do ano passado, o grupo abriu processo de criação de quatro cenas. Mesmo que ainda embrionário, já era possível constatar que o Galpão se aproximaria de temas até então inéditos em sua trajetória. Em Um homem é um homem (2005), os atores falaram sobre guerra por meio do texto de Bertolt Brecht (1898-1956). Agora, levantam discussão sobre a guerra real que aparece nas páginas dos jornais, sobre a violência cotidiana, sobre discriminação e tantos outros temas que pautam nossas conversas.
“Somos desafiados a construir uma relação entre ator e personagem, palco e plateia, ficção e realidade, dentro de uma perspectiva de concretude”, conta Chico Pelúcio. Nós acontece a partir de um ato real de convivência, a preparação de uma sopa. Enquanto os atores cortam os legumes, de alguma maneira articulam – ou pelo menos tentam articular – uma visão de mundo.
“Você chega em casa, liga a TV e ouve as mesmas frases que estamos falando no espetáculo”, comenta o ator Júlio Maciel. Eclipse (2011) foi a última experiência do Galpão com dramaturgia inédita, mesmo que tenha sido baseada em contos do autor russo Anton Tchékhov (1860-1904). Depois disso, trabalharam com clássico do italiano Luigi Pirandello (1867-1936), Os gigantes da montanha (2013), seguido de musical que revisitou a própria trajetória da companhia.
Nós abre muito espaço para improviso. A atriz Teuda Bara ocupa o centro da cena. Inclusive, há momentos em que ela não tem um texto definido. Teuda falará o que lhe vier à cabeça. A relação com o público também é diferente: toda a ação se passa em um tablado. A plateia se dispõe no formato arena.
Entre as outras quebras radicais no jeito Galpão de ser está a aproximação mais intensa com a seara das artes plásticas. Por isso, o ator – e figurinista da montagem – Paulo André situa Nós mais na área da performance do que propriamente como uma obra exclusivamente teatral. “Temos nos renovado bastante nesse encontro com o Márcio”, constata o ator.
RIGOR Para Antonio Edson, Abreu não foi nada condescendente com possíveis limitações ou zonas de conforto do Galpão. “Esse rigor é uma coisa com a qual a gente não tem muito contato. O grupo carece desse exercício”, avalia. “Para fazer um trabalho de verdade, é preciso não ter pudores nem meias verdades. O afeto vem junto de uma certa possibilidade de romper a pele do outro. Senão, não dá para fazer nada”, afirma Abreu.
Ao observar a companhia de outro ponto de vista, o encenador detectou uma característica tão difícil de lidar quanto prazerosa. “É um desafio para a matemática, para a filosofia entender como diferenças tão radicais convivem tanto tempo juntas. É uma aula de cidadania e de arte.”
Eduardo Moreira lembra que a primeira provocação feita por Márcio Abreu foi sobre como cada um reage a uma determinada ação externa que lhe afeta. A questão embaralha alguns nós – as combinações entre indivíduo e coletivo, público e privado, dentro e fora. Curiosamente, a peça termina com uma possibilidade de início. Os atores se perguntam: como recomeçar ou começar algo novo?.
Por esse viés, o espetáculo é, para o Grupo Galpão, uma tentativa concreta de renovação. Em sua dimensão política, Nós dá sinais de que é possível ter esperanças de que as diferenças possam ser aceitas e os homens possam conviver de modo minimamente harmônico. Por isso, abrir mão das fronteiras – entre o público e o privado, o coletivo e o individual, o ator e o personagem. Por isso dizer em português, inglês, espanhol, italiano, francês, alemão e em todos os outros idiomas: “Talvez seja impossível mudar o mundo. Talvez o caminho seja começar por nós mesmos”.
NÓS
16 de abril a 15 de maio. De quinta a sábado, às 21h; domingo, às 19h. Galpão Cine Horto. Rua Pitangui, 3.613, Horto, (31) 3481-5580. R$ 40 (inteira). Venda antecipada pelo site www.sympla.com.br/galpaocinehorto. Na bilheteria do teatro, duas horas antes do início do espetáculo.
MÁRCIO ABREU EM DOSE TRIPLA
Além de Nós, Belo Horizonte terá a oportunidade de ver outras duas montagens dirigidas por Márcio Abreu (na foto de pé). A Cia Brasileira de Teatro, grupo curitibano do qual eleé fundador e integrante, é convidado do Sesc Palladium para o Off Cena. Em 19 e 20 de abril, o grupo apresenta o elogiado Vida, baseado na poesia de Paulo Leminski. Já entre 22 e 24 de abril, entra em cartaz o espetáculo Projeto Brasil, o mais novo do repertório. Abreu também dará uma oficina e participa de uma mesa de debates sobre dramaturgia e o processo criativo da companhia. Mais informações no site www.sescmg.com.br.
É um desafio para a matemática, para a filosofia entender como diferenças tão radicais convivem tanto tempo juntas. É uma aula de cidadania e de arte”
>> MÁRCIO ABREU, diretor, sobre os atores do Grupo Galpão