Nava o fez em homéricos seis tomos descerrando-se ao avesso, recíproco de sua alma angustiada, de Baú de ossos (1972) a Círio perfeito (1983), 11 anos de abissal labor, havendo ainda o póstumo Cera das almas, de 2006, a vasculhar-se em desígnios e frontalidades.
Ambos de Proust, cada qual com sua matéria recôndita – a palavra neles, Nava e Rui –, contudo, segue seu percurso particular. No primeiro, numa prosa autobiográfica trepidante de reminiscências nos mais mínimos detalhes, de uma visão factual legítima, imponderável; em Rui, desse aparato correlato de regências em que as lembranças alumbram-se por mágicas sensações de seu realismo orquestral contundente.
Se os dois a trazem ao revés, a vida em metáforas exposta, têm entre si o prisma da obsessividade telúrica que consigo carregam: Pedro Nava vem daquele berço margeado pelo Paraibuna, Juiz de Fora, a florescente cidade do século 19, passando por Belo Horizonte e findando no Rio de sua geografia imemorial, enquanto Rui Mourão transita, da Bambuí de nascença, pela mesma Belo Horizonte de Nava, outros lugares e os Estados Unidos, mas é em Vila Rica que repousa toda a pulsão de sua ode navegante de artista, prosador e pensador, quem reflete o solo pátrio mineiro do dezessete, a velha Minas aurífera conflituosa.
EXERCÍCIO É um vastíssimo exercício em que se põe a fundo no triscar de três livros subsequentes: Boca de chafariz, Quando os demônios descem o morro e com o de agora, de 2015, Mergulho na região do espanto, cinco anos de absoluta entrega. Misto de invenção e autobiografia, na tríade aloca sua utópica imaginação criadora, expondo-se e expandindo-se nessa tertúlia subjacente, refinada e preciosa, naquele exato lugar onde um artista mais se encontra: em si mesmo.
Dono de uma linguagem poética e plástica, concebendo personagens fictícios ou reais, dando-lhes o sopro da vida à perfeição, enquanto a narrativa avança sob estética singular, percebe-se em Rui alguém dedicado claramente ao romance, desnudando-se por inteiro em suas digressões íntimas, ao subir e descer ruas arguindo figuras surreais. E, deslumbrados, com ele caminhamos, enriquecendo-nos contíguos o que somos, nosso estro humano e o senso individual de vivermos. E criarmos. Em diálogos remissivos impecáveis, entreabrem-nos frinchas, os desvãos que há entre nós e o mundo, a beleza cabal que em cada um repousa diante de um olhar ressurgente, indagador, que doravante se estabelece.
Se ele elegeu Minas e a Inconfidência, os vultos e fantasmas do século 18, nós a escolhemos igualmente, a antiga fábula que também nos punge e, assim, no transitar de agora, o que somos hoje, as pedras que carregamos e pisamos de nossos séculos presentes. Então, Minas, a dimensão sonora a bater-nos dentro, arestas de auroras indizíveis, os vórtices e a fé a sermos espécies incisas, transformando-nos em heróis de nós mesmos.
Vivendo o passado da espectralidade espacial dessa tragédia angular mineira, o romancista nos dá a clarividência de uma totalidade regida em sutilezas, segmentos ciclotímicos e ingentes dessa cantata a palmilhar o dorso de si, no diário acontecer de sua arguta percepção, anunciando-nos o alvorecer, não só as elegias da capitania quanto do próprio Museu da Inconfidência, de quem é, há 40 anos, insígne guardião.
Símbolo áureo da falência do ouro, nesse majestoso prédio de óbvia influência renascentista são velados morfologias, epigramas de entidades, espectros e peças, lápides, túmulos e documentos, também fragmentos e fragrâncias dessa perplexidade brasileira, umbilical de nossa gênese uterina dos povos, raízes, conflitos e dramas que compõem o Brasil e o levante mineiro.
Se em riquíssimos versos Cecília cantou o romanceiro inconfidente, Rui concede-nos a legitimidade da palma, o espaldar, ruídos que se levantam intatos, os vergalhões encravados, as traves da forca e as trevas do altivo Tiradentes a campear sonhos de um cavaleiro andante pelas rotas de Minas e do Rio, os matos adentro do Caminho Novo da Estrada Real.
ODISSEIA Depois de Nava há um outro, este, bipartite em esquadros, adros de um campanário invisível a habitar não só aqui, não só em Bambuí, todavia, menestrel das noites de luar, reside para sempre no altar de Minas: nas praças, palácios e casas, morros correlatos e na visão pontiaguda, grave e assindética do Itacolomi, tendo na base brancas nuvens esvoaçantes. São pedras e nuvens em que ele busca subsídios dessa odisseia urgente, definitiva dos vestígios de um homem e sua alteza, das cláusulas humanas e as seivas artísticas – de que é mestre inconteste –, donde, em espasmos e espanto, trafega sua lira metafísica e extrai excelsa poesia, esse ser inquebrantável chamado Rui Mourão.
Nós somos o que ficará desse substrato indelével entre pessoa e criação, o arbusto das invisibilidades dir-se-iam intocadas, de nossas almas intactas. É daí onde o autor reconstrói-se, não como complementaridade, mas necessidade indômita de gritar, exclamar gritos, transpondo-se por facções, trechos inteiros de sua substância anímica, comungando, por completo, toda a sua magnitude – eis, defronte a nós, o novo Nava.
Memória e tempo, a face de um verbo que se faz arte, qual Dante, Cervantes, Machado, Rosa e Drummond, as catas altas e baixas, resíduos de uma era finda, o ouro que se evade e trinca, Minas, sentimentos, glórias e aleluias, o magma que desce morro abaixo, a mina, chafarizes e demônios, a fonte mouroneana que fica, são avatares de sensações críveis, curvas, ventos e tiranias, o que se superpõe entre nós e a infinitude aqui se encontram, as vagas inertes do solo fértil, o só devaneio, e esteio, Minas, Minas muitas, as planas, montanhosas, voluptuosas Minas Gerais.
*Artista plástico e membro recém-eleito da Academia Mineira de Letras.