De um lado, o ator e diretor Cláudio Botelho, que deu sua opinião de improviso no palco (o chamado “caco”), referindo-se a Lula e Dilma como ladrões, durante a apresentação de musical só com canções de Chico Buarque – um conhecido apoiador do Partido dos Trabalhadores (PT). Do outro, parte significativa da plateia, que se sentiu injuriada o bastante para reagir com barulho e frases de efeito – “não vai ter golpe” –, tornando inviável a continuação de Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos no sábado, no Sesc Palladium, em BH.
A sessão de domingo foi cancelada pelo teatro e Chico Buarque decidiu retirar a autorização para que Botelho use suas músicas neste e em qualquer outro espetáculo que produza. Não bastasse, o diretor passou a ser visto por muitos como racista depois que o site Mídia Ninja publicou áudio captado nos bastidores, momento após a confusão, no qual ele e a atriz Soraya Ravenle discutem o assunto – ele teria se referido a um espectador de maneira desrespeitosa.
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Ouvidos pela reportagem, atores e diretores de teatro contestam uma série de elementos desse episódio, que chegou a ser comparado pelo próprio Botelho à repressão ao musical Roda viva feita pela ditadura em 1968 – coincidentemente, o público da capital mineira parou o espetáculo pouco antes de a canção Roda viva ser interpretada no sábado.
“Não se compara nem de longe. É uma falácia, uma mentira. Roda viva foi invadido pelo Comando de Caça aos Comunistas, quebraram tudo, bateram em gente. O alvo era o texto político. O que ocorreu no último fim de semana foi diferente, foi uma reação da plateia. A plateia foi assistir ao Chico Buarque, não ao Cláudio Botelho. Ele errou e só lamento que seja uma pessoa de teatro. Aliás, acho que a presidente deveria processá-lo”, afirma o diretor Pedro Paulo Cava.
Sobre o ator ser “rei” em cena, Cava observa: “Ator nunca foi rei. Basta estudar a história do teatro para saber que atores foram mortos, presos, exilados em função de suas posições políticas e críticas a valores. Grande parte da dramaturgia brasileira foi riscada do mapa durante a ditadura. Nós continuamos a defender a liberdade de expressão”.
O ator, diretor e produtor Maurício Canguçu afirma que “ator não é rei, é igual a todo mundo. Aliás, somos escravos do personagem. Em compensação, não acho que a plateia deveria ter parado o espetáculo. Liberdade de expressão todo mundo tem, mas a plateia pode levantar e sair. Isso é normal. Saia ou aguente, engula aquilo. O que não pode é a pessoa parar um espetáculo só porque o artista falou algo com que ela não concorda”.
POLÊMICA Canguçu acha que esse tipo de polêmica pode abrir precedente perigoso para a liberdade de expressão do artista. “Meu primeiro espetáculo profissional foi o último visto pela censura, Vereda da salvação, há uns 30 anos. Já pensou se isso volta? Vivemos uma democracia. Quem quer falar, fala e quem não gosta, levanta. A gente nunca sabe como uma ditadura começa. Isso pode ir ganhando força. Aí, surge um movimento e funda-se um partido.”
Veterano do teatro mineiro, Jota Dângelo escreveu textos e dirigiu espetáculos em oposição à ditadura. Ele acredita que o público agiu errado, ao tornar impossível a continuação da peça. “É um absurdo interrompê-la por não concordar com algo que foi dito. Se não concorda, a pessoa deve se levantar e ir embora. Ali não é debate, não é congresso. É falta de respeito com o ator”, observa. Ele acha que a palavra “rei” é “um pouco forte” para ser aplicada a um ator em cena, mas acrescenta que se trata de um trabalho a ser respeitado como qualquer outro.
Na visão dele, a pior atitude de todas foi a de Chico Buarque, ao proibir que Botelho continue usando suas músicas: “Impedir a carreira da peça é um absurdo. Só porque ele discorda do improviso feito pelo ator? Ele não tem nada a ver com isso. Chico deveria continuar mais como compositor, eventualmente escritor. Ele está muito anacrônico em termos políticos”.
Sobre a afirmação de Botelho de que “o ator que está em cena é um rei”, o diretor e dramaturgo João das Neves afirma: “Antes de rei, são pessoas consequentes. Além disso, vivemos hoje na República. Então, que ele (Botelho) seja honesto, reflita e volte atrás no que falou”. Para Neves, a situação se complica ainda mais porque o que gerou a confusão foi um caco em cima de um trabalho de autoria de Chico Buarque. “Todo mundo sabe perfeitamente a posição do Chico. E, num momento como este, é evidente que haveria uma resposta. Não se poderia esperar outra coisa da plateia. Se ele (Botelho) quer fazer, tem toda a liberdade para isso. Mas também a plateia para responder. O que ele não poderia é atacar a plateia, chamando os outros de fascistas, xingando as pessoas.”
A diretora Cida Falabella faz uma outra leitura do imbróglio. “Esse cara (Botelho) é um dos maiores estimuladores do tipo de musical hollywoodiano que chegou há alguns anos no país. O Brasil tem uma tradição muito forte de musical de outra natureza, mas se tornou possível fazer esse modelo (que vem dos EUA) com músicas brasileiras.”
Para ela, ao montar Chico Buarque num modelo importado, a obra do cantor e compositor chega descontextualizada. “O que já traz em si uma contradição forte, pois o Chico é da tradição do teatro brechtiano, sua música é crítica e faz pensar. E ele sempre se posicionou à esquerda. Ou seja, já na própria concepção (do espetáculo) há uma contradição que uma hora ou outra viria à tona”, acrescenta Cida. Ela cita novamente Brecht ao comentar a afirmativa de Botelho de o ator ser um rei quando está em cena. “Pois Brecht dizia justamente o contrário”, diz Cida, citando trecho do poema Sobre o teatro cotidiano: “Ele é um artista, porque é um homem”.
Já o diretor e dramaturgo Eid Ribeiro vai direto ao ponto. “Jogar contra a Dilma e o Lula usando a obra de Chico Buarque foi de uma falta de sensibilidade e de uma burrice ao mesmo tempo.” Para Ribeiro, “ator não é rei em lugar nenhum, porque o palco é público, é de todo mundo”.
Três perguntas para José Celso Martinez Corrêa, diretor
O ator e diretor Cláudio Botelho comparou os protestos da plateia que suspenderam a sessão de estreia de Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos em BH, à repressão, pela ditadura, do espetáculo Roda viva, dirigido pelo sr., em 1968. O que acha da comparação?
Quem está querendo reprimir a nós todos com uma ditadura civil militar tipo Coreia do Norte, como a massificação absoluta verde-amarela, demonstrada na manifestação da classe média branca brasileira dia 13, é a fala dele, totalmente descabida numa peça de Chico Buarque. Não tem nada de “como” em 1968. A música pode ser a mesma, mas a letra que ele colocou é do CCC: sem poesia nem arte nenhuma. O ator em cena não é um rei, mas um anarquista coroado, um duplo do ator que sabe de si, e não um número do rebanho, um reizinho ignorando o que é o teatro.
No espetáculo, Botelho utilizou um discurso próprio contra o governo federal, na obra de um autor que já declarou seu apoio ao mesmo governo. Acredita ser contraditório?
Ele pode fazer o que quiser, mas o público do Chico está em outra. Há muito que essa lataria importada de “musicais americanos” que dominam a cena da classe média rica vem fazendo propaganda do golpe. E o “público rebanho”, interessado em manter seu apartheid, até aplaude. Mas quando se trata de Chico Buarque, trata-se de outro planeta.
Que lembranças o senhor guarda da experiência que teve com Roda viva?
A de ter sido um acontecimento até hoje não entendido como revolucionário teatralmente, porque trouxe o coro de volta ao teatro mundial – coisa que não ocorria desde o teatro grego. O coro na peça – não o chorus line mecânico dos musicais americanos – de levantar a perna todos ao mesmo tempo. É um coro que trouxe o conhecimento de que o espaço cênico não é só o palco italiano, mas todo o local onde se atua, e o público não é um certo número de pessoas, mas pessoas concretas, carnes que podem ser tocadas como no candomblé ou no carnaval. Roda viva é mais atual hoje do que nunca. Se Chico liberasse a montagem da peça, teria o maior prazer em começar a dirigir agora. Ainda mais neste momento em que temos que lutar contra o golpe já instalado. (MP)