Marília Pêra (1943-2015) é uma síntese da história do teatro, do cinema e da televisão nas últimas décadas. Em Pixote, a lei do mais fraco (1981) e Central do Brasil (1998), lá está ela em dois marcos do cinema nacional. Por seu trabalho nas peças Apareceu a Margarida, Brincando em cima daquilo e Roda viva, arrebatou a crítica e levou para casa três prêmios Molière, o mais desejado pelos atores nacionais. Na TV, são dela momentos de emoção em produções como Brega e chique, Os Maias, Primo Basílio, Ti-ti-ti e Pé na cova, seu último trabalho.
Mas isso é apenas uma gota no oceano. A carreira de Marília vai além. São mais de 70 prêmios em reconhecimento às atuações em 49 peças, 29 novelas, 24 filmes e 19 direções de teatro e shows. Nada escapou ao olhar de Sandra Pêra, irmã de Marília, que, em um trabalho de muita paciência e atenção, conseguiu reunir o que há de significativo não só na trajetória individual da irmã, como na história coletiva das famílias Marzullo e Pêra. O resultado está na fotobiografia Marília Soares Marzullo Pêra, que a Editora Arte Ensaio acaba de lançar.A obra não foi feita apenas como uma bela homenagem à memória da atriz, morta em dezembro do ano passado, vítima de câncer nos ossos e no pulmão.
Sandra conta que o interesse surgiu por acaso, há quatro anos, quando começou a organizar em álbuns – “desses de papelaria” – as fotos da família, todos atores, em cena. “Marília gostou da ideia e me enviou outra quantidade enorme de fotos. Foi uma loucura”, recorda ela, que, na época, virou uma espécie de Sandra Memória, o centro de documentação da família.
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Vindos de Portugal, os Pêra chegaram ao Brasil em 1889. O patriarca Manoel Pêra estava então com 5 anos. Para sustentar a família, o teatro era a única fonte de renda. Não só dos Pêra, como também dos Marzullo, família de Dinorah, que mais tarde se casaria com Manoel.
O casal construiu um nome no teatro, ao lado de talentos como Grande Othelo, Procópio Ferreira, Henriette Morineau. Marília fez sua estreia aos 5 anos, na montagem de Medeia, sob direção de madame Morineau. Nunca mais parou.
Entre as lembranças que Sandra guarda com carinho está o jeito mãezona de ser de Marília. “Lembro-me de uma vez, em um programa de Edna Savaget, na TV Tupi Rio, em que Marília me chama a atenção por eu não estar sentada de forma elegante”, recorda, bem-humorada. “Era um desajeito!” Com a doença, o papel se inverteu. “Marília virou minha filha. Entrei em todas as igrejas, pedindo por melhoras para ela”, conta, lembrando-se de que em julho do ano passado a irmã estava zerada. Mas a doença retornou pouco tempo depois, em metástase.No livro, entre fotos da família, histórias contadas por Sandra e Marília, cenas de peças, reportagens e fotos de amigos, há registros das irmãs em Belo Horizonte, durante os espetáculos Acredite, um espírito baixou em mim, dirigido por Sandra, e A senhora café, com direção de Marília. Ambas eram produções de Ílvio Amaral e Maurício Canguçu. “Minha irmã sempre teve uma admiração muito grande por eles e um enorme carinho por Belo Horizonte”, diz Sandra.
Final muito dramático
Em seus últimos meses de vida, Marília Pêra viveu momentos dramáticos. Um dos mais tristes foi uma consulta com seu oncologista. O médico decretou: “Você terá apenas seis meses de vida”. Marília era durona. Enfrentou barras-pesadas como uma surra dos integrantes do Comando de Caça aos Comunistas quando integrava o elenco de Roda viva, e a prisão após encenar A Moreninha. Mas essa notícia ela não suportou.
“Tenho certeza de que, a partir desse dia, o quadro dela piorou”, afirma Sandra Pêra, sem compreender os motivos de o médico para ter sido tão áspero com a irmã. “Não digo o nome dele, mas, a partir daí, o estado de saúde da minha irmã piorou. O médico precisa entender que ao redor de um tumor existe um ser humano. Marília sempre dizia: ‘Vou morrer em abril!’”.A atriz teve que conviver ainda com notícia publicada em um blog informando que seu estado de saúde era péssimo. “Estávamos em casa e, de repente, o celular dela começou a tocar. Primeiro foi Daniel Filho, depois Cininha de Paula, Luma Costa. Não entendi muita coisa, até que um jornalista ligou no meu celular querendo saber se aquela nota era verdade. Marília estava debilitadinha, mas ainda estava trabalhando, ensaiando aqui em casa a peça Depois do amor.”
O acervo de Marília Pêra está guardado em caixas espalhadas pelos imóveis da família. Tudo bem cuidado, à espera da realização do último sonho da atriz: um espaço para tornar público seu acervo. “Ela tentou, mas nunca conseguiu a viabilização do projeto”, lamenta Sandra.
Marília morreu na primeira semana de dezembro de 2015. Incluiu em seu testamento os amigos mais próximos e com alguma dificuldade financeira. A lista reúne 18 pessoas, entre afilhados, primos e primas “mais duros”, assim como atores muito próximos e a secretária, que trabalhou por muitos anos com ela. “Marília disse que aquilo era apenas uma graciosidade para os amigos.” Sandra conta que no testamento a irmã pediu para que não fosse escrita nenhuma biografia. “O pedido será respeitado.”MARÍLIA SOARES MARZULLO PÊRA
>> Editora Arte e Ensaio
>> 304 páginas
>> R$ 70