No prédio que evoca a história republicana – e por só si merece horas e horas de visita e muita atenção –, a exposição joga luz – e põe luz nisso! – sobre a trajetória do museólogo, carnavalesco, ator, cantor, pesquisador, professor, criador de bailes de fantasia, agitador cultural e militante do movimento LGBT. Em plena década de 1970, Bornay (1916-2005) teve a deliciosa audácia de gravar uma marchinha, de autoria de Jayme Bochner, para a fatia colorida da torcida do Flamengo, a Fla-Gay, cantar no estádio do Maracanã. Certamente, muito rubro-negro ruborizou e tentou marcar impedimento, mas o gol da irreverência já estava feito.
Para facilitar o passeio de cultura e diversão, a mostra Clóvis Bornay 100 anos está dividida em três salas, enfocando os temas ‘‘Profissional e personagem’’, ‘‘Mestre das fantasias’’ e ‘‘Singular & múltiplo’’. Nesses ambientes, pode-se ver parte do acervo pessoal, com documentos, croquis, retratos, livros, manuscritos e homenagens recebidas na forma de placas e troféus. Para o curador Mário Chagas, também coordenador técnico do Museu da República, a exposição destaca “o personagem de grande popularidade e de grande respeito, o que o tornou singular e múltiplo”.
SOBERANO
Logo na entrada, no térreo do Palácio do Catete, o visitante se encanta com uma fantasia azul, de manto longo, e fica pensando se algum soberano, pelo menos uma vez na sua “real existência”, usou algo tão suntuoso e criativo. Então, dá vontade de entrar logo, ver outras roupas – são três fantasias originais restauradas especialmente para a mostra – e conhecer mais sobre o carnavalesco nascido em 10 de janeiro de 1916, em Nova Friburgo (RJ), filho de mãe espanhola e pai suíço e caçula de 12 irmãos.
Frequentador, ainda menino, dos bailes do Fluminense Futebol Clube, o pequeno discípulo de Momo já manifestava interesse e vocação pela arte de ser folião. Tanto jovem como na fase madura, era considerado uma pessoa “alegre, generosa, descontraída, culta, sorridente, dançante, meiga e doce”, conforme diz o texto de divulgação da exposição. Na passarela do samba, ele se soltava. E ainda tinha fôlego de sobra para trabalhar como carnavalesco das escolas de samba Salgueiro, Unidos de Lucas, Portela, Mocidade Independente de Padre Miguel e Unidos da Tijuca. Pela Portela, foi campeão em 1970 com o enredo Lendas e mistérios da Amazônia.
Advogada e professora de história, a carioca Bárbara Schubck conheceu o mestre da fantasia. “Tive o privilégio de ter Clóvis Bornay como presidente do júri do Festival de Cinema Super 8, que organizei no Clube dos Diretores Lojistas do Rio de Janeiro, em 1985. A escolha não podia ser melhor, pois ele encantou, com a sua educação, cultura, seriedade e conhecimento, os integrantes do júri, além dos cineastas participantes da mostra e demais convidados”, recorda Bárbara.
Museólogo, Bornay atuou no Museu da República, instituição vinculada até 1983 ao Museu Histórico Nacional. Tanta experiência, aliás, lhe permitiu proferir uma frase emblemática: “Ser museólogo não é nada; mais difícil é ser Clóvis Bornay todos os anos nas passarelas”. Com reconhecimento nacional e internacional, o mestre da fantasia, ano após ano, tentava superar as criações anteriores e animava os bailes de gala do Teatro Municipal, no Rio, ao lado de Evandro de Castro Lima, Mauro Rosas, Wilza Carla, Jésus Henriques, Violeta Botelho, Nucia Miranda, Marlene Paiva, Guilherme Guimarães e outros. Vale a pena ler um pouco das matérias de jornais daqueles tempos, também exibidas, e se deliciar com os “barracos” envolvendo os concursos de fantasia, quando os perdedores, indignados, partiam para cima dos campeões. Era uma festa de farpas, purpurinas e fofoca.
DOCUMENTÁRIO
Nessa viagem pelo reino da fantasia de Clóvis Bornay, ele aparece como jurado de programas de televisão, na década de 1970, dos apresentadores Flávio Cavalcanti (1923-1986) e Sílvio Santos.
Quando a gente pensa que já viu tudo, vem o grand finale: um vídeo de 1969, em preto e branco, quando foi recriada nos jardins do Palácio do Catete a primeira missa celebrada no Brasil. Primeiro surgem os índios, com cocar de espanador, dançando com vontade; e depois, acenando para o público, o descobridor Pedro Álvares Cabral. E quem vem de Cabral? Com o chapéu de plumas, lá vem Clóvis Bornay, com a mesma elegância e glamour com que pisava as passarelas do carnaval e as trilhas da vida real.
Clóvis Bornay 100 Anos
Salas de Exposições Temporárias do Museu da República/Palácio do Catete (Rua do Catete, 153, Catete), no Rio de Janeiro (RJ). De terça a sexta, das 10h às 17h. R$ 6. Visitação até abril. Informações: (21) 2127-0324..