Para o professor e curador Luiz Camillo Osorio, o brasileiro Iberê Camargo poderia perfeitamente ter feito o mesmo no Museu do Prado, em Madri, diante das obras do espanhol Goya. “Esse confronto faz sentido. Funciona. É um pintor que lida com a tradição. Não enquanto um modelo a ser repetido, mas atualizado”, explica. É essa dimensão que o público de Belo Horizonte poderá ver na exposição Iberê Camargo: um trágico nos trópicos, de amanhã até 28 de março, no Centro Cultural Banco do Brasil.
Serão expostas 131 obras, entre elas 49 pinturas, 40 desenhos, 32 gravuras e 10 matrizes criadas entre 1950 e 1994, o ano da morte do pintor gaúcho.
A exposição que chega a Belo Horizonte já passou pelo Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro e os CCBBs de São Paulo e Brasília. O conjunto aproxima o público do universo sombrio do pintor ao propor um percurso capaz de ilustrar a evolução da linguagem de Iberê. O belo, diante da obra do artista gaúcho, ganha sentido ainda mais relativo. Camargo representa uma contracorrente na tradição da pintura brasileira. É um trabalho muito mais soturno do que solar. Mais denso do que leve.
“O temperamento dele era esse mesmo: começava colorido e acabava escuro”, conta Eduardo Haesbaert, hoje coordenador do acervo da Fundação Iberê Camargo, mas que começou a carreira como assistente do artista na década de 1990. Do mestre, guarda a lembrança da persistência. “Falava para não ter medo de refazer as coisas. Quando terminar uma obra, não continuar com aquilo para sempre. Tentar mudar.”
Iberê Camargo: um trágico nos trópicos apresenta as mudanças de cursos e elementos que o pintor adotou em pelo menos dois momentos da carreira. A fase entre 1950 e 1970, que compreende o início da carreira e a consagração internacional, é tida como a mais poética.
“Ao mesmo tempo em que tem o desenvolvimento do tempo, você percebe que é o mesmo pintor, a mesma paleta”, observa Luiz Camillo Osorio. A exposição começa pela fase final. Os primeiros quadros são No vento e na terra (1991) e No vento e na terra II (1992), duas versões de uma mesma imagem, uma mais clara que a outra. Eles sintetizam a busca crepuscular de Iberê.
Como Eduardo Haesbaert conta, geralmente, as pinturas, ao longo do processo, iam escurecendo e as cores vibrantes iam sendo substituídas pelo preto e tons cinzentos. No caso de No vento e na terra, quando dona Maria Coussirat Camargo, viúva de Iberê, viu o inacabado, pediu para o marido dar a obra como finalizada. “Ele guardou aquela na garagem, mas começou a fazer de novo. Retoma, faz na mesma posição, mas na paleta que ele gostaria de chegar”, explica Eduardo.
São quadros enormes, com quase três metros de largura. A primeira parte da exposição enfatiza a dimensão trágica da obra, especialmente a fase final da vida dele. “São telas grandes que ele já pintou doente e que em vez de arrefecer, radicaliza. É mais potente, sombrio e violento”, detalha o curador Luiz Camillo Osorio.
Depois disso, a mostra apresenta um itinerário mais panorâmico e cronológico.
“É um esmero técnico que não é preciosista no sentido de fazer certinho. A técnica dele é encontrar o gesto que traduza uma determinada experiência”, explica o curador. Estão nas últimas salas da exposição as famosas séries Ciclistas e também As idiotas, uma homenagem do gaúcho à literatura de Dostoiévski.
Sem medo de mudar
Iberê Camargo repetia a quem quisesse o ensinamento que recebeu do professor mineiro Alberto da Veiga Guignard (1896-1962). “Ele dizia que uma obra fica pronta quando faz ‘plim’. Quando ela não te pergunta mais nada”, lembra Eduardo Haesbaert, com um sorriso saudoso. Ele também recorda que, na maioria das vezes, o “plim” chegava depois de muitas tentativas.
Iberê não pensava duas vezes em desmanchar aquilo que não lhe agradava. O pintor tinha uma rotina diária no ateliê. Sempre no turno da tarde, se alternava entre as atividades com telas e tintas e a gravura. Faziam parte do cenário do ateliê a bicicleta, os manequins – elementos constantes na obra dele.
Só criava com modelo na frente dele. Em geral, quem posava era Helena Lunardi, também responsável pela faxina do ateliê. “Ficava nua, sentadinha, olhando, e ele transformando aquela figura em uma outra. Era um personagem, uma criatura mesmo”, conta Eduardo. Entre o faz e refaz, o chão ficava cheio de tinta. “A modelo já saía limpando o chão, os pincéis. Lavava com água quente e sabão para estar pronto para a batalha do outro dia. Iberê era disso”, sintetiza.
Quando terminava um quadro, o gaúcho também gostava de fotografá-lo. Ao terminar A idiota (1991), recortou da foto a figura central e colou no centro de uma ilustração do mapa do Brasil. “Escreveu embaixo ‘minha gente’. É isso que ele achava: uma idiotia no sentido de sem ação”, explica Eduardo sobre a obra criada no período que antecedeu o impeachment do então presidente Fernando Collor de Melo.
ACERVO
Todo o acervo da Fundação Iberê Camargo foi disponibilizado na internet. Quatro mil obras podem ser consultadas, assim como dezenas de documentos, catálogos, recortes de jornais e revistas, correspondências e outros. Fazem parte do acervo curiosidades que revelam o afeto do pintor com outros artistas brasileiros. Há, por exemplo, um cartão de Natal que Iberê recebeu de Jorge Amado e Zélia Gattai. De Alberto da Veiga Guignard, que foi professor de Iberê, são muitas correspondências. Em uma delas, o mineiro sugere ao gaúcho um passeio a Jurujuba, em Niterói (RJ). O endereço para consulta do material é https://acervodigital.iberecamargo.org.br/
VÁRIAS FASES
131 obras
49 pinturas
40 desenhos
32 gravuras
10 matrizes
IBERÊ CAMARGO: UM
TRÁGICO NOS TRÓPICOS
No CCBB. Praça da Liberdade, 450, Funcionários, (31) 3431-9400. Abre amanhã. De quarta a segunda-feira, das 9h às 21h. Até 28 de março. Entrada franca.