A peça é um monólogo de Matheus Soriedem, com direção de Juarez Guimarães Dias. Durante as manifestações populares de junho de 2013, o ator se viu em meio aos protestos em dúvida sobre as próprias reivindicações. Nessa época, ele recebeu um convite para visitar a Casa do Sol, onde viveu a escritora Hilda Hilst (1930-2004). Lá, conheceu o livro O inventário do ir-remediável, de Caio Fernando Abreu (1948-1996), hóspede da casa quando fugia da perseguição do Departamento de Ordem Política e Social (Dops).
“Vi que a história dele era muito parecida com a minha. Também ia às manifestações como eu”, diz Soriedem.
EuCaio tem a dramaturgia composta por fragmentos de contos de Caio Fernando Abreu, cartas, textos de artistas perseguidos pela ditadura e também do decreto do AI-5. “É uma dramaturgia inédita. Um texto que foi construído a partir de muitas referências”, explica o diretor. Segundo ele, foi um processo criativo de muita entrega. “Não precisa ter hierarquia quando você tem um ator que está pensando com você”, diz.
O espetáculo começou a ser delineado em abril de 2014, quando o golpe militar completou 50 anos. Desde então, em versão cena curta, passou por eventos como Amostra.lab e Encontro Sesi de Artes Cênicas de Araxá. Em julho deste ano, EuCaio fez pré-estreia no Teatro de Cama, no Morro do Vidigal, no Rio de Janeiro.
O objetivo da montagem é, por meio de um percurso poético, refletir sobre as privações de liberdade presentes na democracia. “É um retrato atual da ditadura”, diz Guimarães Dias. “Hoje em dia, vivemos ditaduras veladas – contra os homossexuais, os negros, os travestis, as mulheres. Temos uma ditadura atual”, afirma o ator.
Ao longo dos 50 minutos de espetáculo, Soriedem afirma o desejo de compartilhar um ponto de vista sobre a realidade. “Como cidadãos, queremos que a diversidade seja aceita; que o amor seja apenas amor, que haja igualdade. Sinto-me representado por este espetáculo”, resume.
Do papel ao palco
Em EuCaio, Juarez Guimarães Dias experimenta de maneira mais ampla procedimentos que estudou para a elaboração de sua tese de doutorado, defendida na Universidade Federal de Minas Gerais. Boa parte do que está na cena protagonizada pelo ator Matheus Soriedem é resultado prático das reflexões acadêmicas, agora lançadas em livro.
Narrativas em cena: Aderbal Freire-Filho (Brasil) e João Brites (Portugal) é uma obra que confirma a elasticidade daquilo que podemos chamar teatro.
Narrativas em cena mergulha em três trabalhos cênicos de cada um dos diretores analisados, que têm em comum o fato de serem baseados em literatura. No caso de Aderbal, foram estudadas as peças A mulher carioca aos 22 anos (1990), O que diz Molero (2003) e O púcaro búlgaro (2006), encenações de livros homônimos de João de Minas, Dinis Machado e Campos de Carvalho, respectivamente. São espetáculos que levaram os romances literalmente para o palco, sem qualquer adaptação.
De João Brites, Guimarães Dias selecionou Gente feliz com lágrimas (2002), de João de Melo, Ensaio sobre a cegueira (2004), de José Saramago, e Jerusalém (2008), de Gonçalo M. Tavares.
Foram quatro anos de pesquisa e, como parte da metodologia, Juarez decupou cada uma das peças estudadas. “Fui marcando as cenas no livro. O Aderbal fez literalmente. Praticamente tirou 0,5%.
Ao longo desse processo, a tríade formada pelo texto, a encenação e o ator ganhou ainda mais importância para o pesquisador. Na obra, ele afirma que “ao levar para o palco textos literários, romanescos neste caso, esses materiais inevitavelmente colocarão impasses, questões e equações para a cena que, por sua vez, deve recorrer aos seus próprios recursos para construir com eles espetáculos de teatro”.
EuCaio
Solo de Matheus Soriedem. De hoje a quarta, na Sala Juvenal Dias. Palácio das Artes (Av. Afonso Pena, 1.537, Centro). R$ 20 e R$ 10 (meia)