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O banquete da burrice

Festival de Besteiras que Assola o País ganha nova edição, 50 anos depois de ser lançado

Lançado por Sérgio Porto, festival teria, hoje, cardápio muito maior com a internet e o Enem

Por Paulo Nogueira
 
“Um médico de plantão do Hospital Miguel Couto estava às voltas com atendimentos graves, fraturas, atropelamentos, cirurgias de emergência e o diabo, quando entrou um cavalheiro nervoso e muito apressado.
Entrou, interrompeu o atendimento do médico a um doente grave e foi dizendo: ‘Eu sou coronel’. O médico tirou o estetoscópio do pescoço e perguntou: E qual é o outro mal de que o senhor se queixa?”.

Com tiradas arriscadas assim, em plena década de 1960, nos primeiros anos do regime militar, Sérgio Porto debochava das besteiras e mazelas da “redentora” (como ele definia a ditadura), das autoridades, de funcionários públicos burocratas e de quem mais falasse asneiras ao vento, inclusive a própria imprensa, com seu Festival de Besteiras que Assola o País (Febeapá). Jornalista, cronista, radialista, compositor e homem de teatro e TV, ele marcou sua época principalmente ao criar não apenas um alter ego, Stanislaw Ponte Preta, mas uma família de alter egos (Tia Zulmira, Primo Altamirando, Rosamundo, Bonifácio, Patriota, e Doutor Data Vênia), além da Pretapress, agência de notícias fictícia que abastecia o Febeapá. O escritor e jornalista Sérgio Porto, que adotou o pseudônimo Stanislaw Ponte Preta - Foto: Jean Solari/O Cruzeiro/EM/D.A PressStanislaw, logo apelidado de Lalau, foi inspirado no personagem Serafim Ponte Grande, criado pelo modernista Oswald de Andrade em 1933. Porto foi precursor da irreverência, da ironia e da sátira. Depois dele vieram Janistraquis de Azevedo Varejão, alter ego do jornalista Moacir Japiassu, que passou a destilar ironia para criticar besteiras publicadas pela mídia impressa em seu Jornal da ImprenÇa, e outros colunistas deste país da piada pronta e da esculhambação geral da República.

Porto era frasista nato. Cunhou expressões cada vez mais atuais em um país assolado pela corrupção explícita. Um exemplo: “Restaure-se a moralidade ou nos locupletemos todos”, disse ele há mais de 50 anos.
Criou também bordões memoráveis: “Mais por fora do que umbigo de vedete”, “mais branco do que bunda de escandinavo”, “mais feio que mudança de pobre”.

CORAGEM Cinquenta anos depois de seu lançamento, Febeapá 1, 2 e 3 são relançados em volume único pela Companhia das Letras. No prefácio, o crítico Sérgio Augusto já define a obra: “Lalau não alivia para ninguém. Foram poucos os escritores brasileiros que tiveram coragem de peitar a ditadura com tanta corrosão e petulância. A estupidez e a violência de uma classe arrogante e pouco ilustrada desde tempos coloniais sofreram uma espécie de destilação na metade do século 20, em especial a partir de 1964, ano aziago, e o satirista carioca serviu-se dela como em um banquete. A refeição, porém, é sempre indigesta.” Uma pena que a nova edição não conte  com as geniais ilustrações de Jaguar, que davam um tom mais engraçado àquelas publicadas nos anos 1980/90, principalmente os três burros empilhados na capa.

Numa época muito anterior à globalização tecnológica e midiática, em que a televisão, que ele já chamava de máquina de fazer doido, apenas engatinhava no Brasil, o alter ego ferino de Porto recorria aos jornais e documentos do poder público (do pequeno município ao governo federal) e a tudo que estivesse ao seu alcance pela Pretapress. Em pouco mais de 10 anos, o Febeapá rendeu três volumes sobre “coisas jocosas, gozadas, bestas, broncas, ridículas, absurdas, vis, infames, porcas, indecentes, obscenas, tradicionalmente constitutivas das relações sociais no Brasil, desde os tempos coloniais, e intensificadas pelo ‘liberou geral’ do retorno do recalcado fascismo nos cinco primeiros anos, entre 1964 e 1968, dos longuíssimos vinte ou 21, ou mais, que por aqui durou a ditadura de 1964”, escreve o também o crítico literário João Adolfo Hansen no posfácio.

Porto e Lalau “abominavam os hipócritas, os racistas, os puxa-sacos e não tinham em melhor conta o milico metido a machão, o burro metido a sabido e o intelectual metido a besta”, descreve Sérgio Augusto. Curiosamente, em uma época em que não existia o politicamente correto (e geralmente hipócrita) dos dias atuais, a dupla implacável usava corriqueiramente adjetivos e expressões como “bicharoca” e “crioulo doido”, que hoje renderiam até processos judiciais.

A constatação é inevitável. Ah! se Lalau fosse vivo em tempos de internet e de redações do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A cada segundo surge uma besteira virtual. A cada exame, centenas de baboseiras de um país ainda altamente iletrado e aculturado, em que o senso comum é a falta de leitura e a dificuldade de concatenar ideias e interpretar fatos.


•  BESTEIRAS HISTÓRICAS (DO LALAU)

“Ninguém levantará a saia da mulher mineira”
•  Delegado de costumes de BH, ao criticar a chegada da minissaia e ameaçar prender o costureiro Pierre Cardin

“Estarei aqui diariamente às terças e quintas”
•  Ibrahim Sued, ao estrear em um programa de TV

“Dr. Equinócio ainda não passou por aqui. Se chegar, será recebido como amigo, com foguetes, passeata e festas”
•  Resposta de prefeito à circular do governo pedindo informações sobre a seca depois da passagem do equinócio

“Logo que seja inaugurado, o hospital será entregue ao público, recebendo até mesmo doentes que necessitem de cuidados médicos”
•  Secretário de Saúde de Brasília

“O senhor Israel tem sangue de boi em suas veias, cheira a capim e traz em si o movimento telúrico dos milharais em espiga”
•  Discurso de posse do secretário de Agricultura do governo Israel Pinheiro, em Minas Gerais


•  AS BESTEIRAS DO ENEM

“A ciência progrediu tanto que inventou ciclones como a ovelha Dolly”

“No Exército romano havia as catapultas, que eram policiais que combatiam a prostituição”

“A Segunda Guerra Mundial foi um período de paz e de prosperidade para a Alemanha”

“O Brasil foi povoado por ladrões, prostitutas, mercenários e negros que vinham da África dentro de navios negrescos procurando emprego”

“Na floresta amazônica tem muitos animais: passarinhos, leões, ursos, etc.”

“Na Grécia, a democracia funcionava muito bem porque os que não estavam de acordo se envenenavam”


FEBEAPÁ
•  De Stanislaw Ponte Preta
•  Companhia das Letras
•  488 páginas
•  R$ 54,90
•  R$ 37,90 (e-book)
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